Um dos santos que mais cativaram o coração e as estima do povo cristão foi Santo António. Chama-se-lhe, segundo a frase famosa de Leão XIII, «o santo de todo o mundo»; mas é conhecido, amado e invocado preferentemente pelo povo humilde, que vislumbrou nela o distribuidor dos tesouros celestiais e o protetor decidido dos interesses dos pobres. A história, principalmente a mais antiga biografia do santo Lisboeta ou Paduano, conhecida pelo nome de Assídua, dá-nos em síntese um perfeito esboço do mesmo. Escassas e imprecisas são as notícias dos primeiros biógrafos sobre o berço e a infância do santo. Nenhum deles indica o ano do nascimento, que modernamente podemos colocar em 1191 ou 1192. Foram seus pais, Martinho de Bulhões e Teresa Taveira. Segundo o mais antigo biógrafo, nasceu em Lisboa, cidade «situada nos confins da terra», numa casa que tinham seus pais junto e ao norte da Sé, em cujo baptistério recebeu as águas baptismais a oito dias do nascimento, sendo-lhe imposto o nome de Fernando. Os seus anos juvenis perpassaram no seio da família, transformado no encanto dos pais, por ser o primogénito e por parecer dotado de boa índole, probidade e integridade de costumes. Desde a sua mais tenra idade, professou especial devoção para com a Virgem Santíssima, a quem se consagrou e escolheu como preceptora, guia e sustentáculo da sua vida e morte. O historiador Súrio diz que ele visitava amiúde as Igrejas e mosteiros da cidade e que era compassivo com os pobres, a quem socorria nas necessidades. Juntamente com a formação religiosa, pensaram seus pais em educar intelectualmente o filho, confiando-o aos desvelos do mestre-escola da catedral, para que o iniciasse nos rudimentos da gramática, retórica, música, aritmética e astronomia, matérias que integravam o plano de estudos das escolas catedralícias daquele tempo. Dizem os seus biógrafos que o santo foi acometido na juventude pela violência das paixões; acrescentam, porém, que o «santo jovem nunca, nem por um instante, se rendeu às exigências» do mal. Estas crises passionais, que assaltam a juventude e para muitos jovens são um princípio duma vida de pecado, foram para o santo a pedra de toque que o moveu a encaminhar-se por outras sendas que estivessem ao abrigo do demónio da impureza. Daí a sua decisão de entrar no mosteiro de S. Vicente de Fora, situado nas cercanias de Lisboa e habitado por homens dignos de honra pela sua piedade, como eram esse Cónegos Regrantes de Santo Agostinho. Dois anos morou o santo neste mosteiro, até que, devido ás frequentes visitas de pessoas de família e amigos, que lhe perturbavam a paz e o recolhimento, pediu para ser mudado para a casa-mãe de Coimbra, na qual entrou aos 17 anos. Aqui levou vida tão fervorosa, que os antigos biógrafos asseguram ter nesta altura escalado Fernando os cimos da santidade. O intenso trabalho espiritual unia-se ao dos estudos. Ainda que muito amplos, tendiam só a assegurar o conhecimento mais perfeito da Sagrada Escritura. Atendendo ao ambiente político-religioso do mosteiro de santa Cruz durante os tempos em que morou lá o santo, tiramos a conclusão de que a sua santidade e ciência foram mais produto da graça e do esforço pessoal, do que imposições do meio ambiente. Numa atmosfera de lutas, intrigas e defecções dolorosas, vivia o jovem Fernando entregue à oração e ao estudo. Lá foi ordenado sacerdote em 1220. Todavia, mais de uma vez sonhou na possibilidade de abraçar outro género de vida mais perfeito, ao abrigo do ruído do mundo. A vida simples dos pobrezinhos, filhos de S. Francisco de Assis, do eremitério de Santo António dos Olivais, em Coimbra, atraiu-o irresistivelmente. Teve Fernando o seu primeiro contacto com esses frades ao hospedarem-se no mosteiro os futuros protomártires franciscanos de Marrocos, na sua passagem por Coimbra, quando se dirigiam para a África. Além disso, os frades dos Olivais vinham ao mosteiro à procura de esmolas; atendia-os o jovem monge que, segundo o testemunho do padre Manuel Azevedo, tinha a seu cargo a hospedaria. A este cenóbio foram depois trazidos os corpos dos primeiros mártires de Marrocos. Que impressão causaram na alma de Fernando os despojos mortais daqueles intrépidos soldados da fé? Despertaram nele o desejo de se consagrar ao apostolado entre infiéis e morrer mártir de Cristo. Era impossível realizar os seus sonhos enquanto permanecesse em Santa Cruz de Coimbra, porque o mosteiro não tinha, no seu programa de vida, as missões entre infiéis e ele só podia levá-los a cabo no caso de professar numa ordem como a franciscana, mas para efetuar esta passagem tinha de contar com a autoridade dos superiores de ambas as Ordens (cf. S. Berardo e cc. mm., 16 de Janeiro). Um dia, segundo o costume, os fradinhos de Santo António dos Olivais vieram ao mosteiro à procura de esmola, e Fernando, em segredo, confiou-lhes o seu propósito, dizendo-lhes: «Irmãos, receberia com entusiasmo, o hábito da vossa Ordem se me prometêsseis enviar-me, logo a seguir, à terra de sarracenos a fim de participar da coroa dos santos mártires». Eles deram-lhe a palavra e fixaram para a manhã seguinte a entrada na Ordem Franciscana. Naquela noite, segundo o biógrafo mais autorizado, arrancou Fernando, com muito custo, e à força de insistência, a licença do prior do mosteiro. Com o fim de vencer dificuldades por parte da família e dalguns monges de Santa Cruz, combinou-se que Fernando mudasse o nome para António, que era o titular do eremitério onde residiam os franciscanos, e foi combinado ainda que fosse mandado quanto antes para a terra de infiéis. A cerimónia da imposição do hábito ao novo candidato foi rápida e simples, pois o prior, o mosteiro, a diocese e todo o reino estavam sob interdito imposto pelo arcebispo de Braga; neste estado, estava proibida a celebração pública tanto da santa Missa com o do ofício divino. No verão de 1220 vestia António a libré franciscana e nos princípios de Novembro desembarcava em Marrocos. Terrível doença o reteve todo o Inverno na cama e os superiores da missão julgaram conveniente repatriá-lo como medida de convalescença. Com esta intenção embarcou; mas um vento forte impeliu o navio para oriente, obrigando-o a atracar nas costas da Sicília. António refugiou-se no convento franciscano perto de mesma e dali, sem qualquer incumbência oficial, foi para o Capitulo Geral convocado para Assis pelo seráfico Fundador, que começou a 20 de Maio de 1221. António passou inadvertido no meio daquela multidão, de maneira que, terminado o Capitulo, ficou às ordens do Ministro geral. A pedido do santo, o provincial da Romanha levou-o consigo. E do mesmo conseguiu ele licença para se retirar ao eremitério do Monte Paulo para consagrar-se à solidão. Aquela alma privilegiada não devia, no entanto, viver só para si, mas ser útil e proveitosa para os outros. E não tardou que se apresentasse a oportunidade de se revelar ao mundo, pregando um sermão em Forli, nas têmporas de Setembro de 1221, diante dos religiosos franciscanos e dominicanos que foram ordenados sacerdotes. A pedido do Superior falou, e de tal maneira que todos ficaram maravilhados com a torrente de sabedoria que brotava dos seus lábios. Aquela intervenção de António surpreendeu agradavelmente o provincial, que pensou em dedicá-lo imediatamente ao apostolado. O seu primeiro campo de acção apostólica foi a Romanha, região afectada pelos hereges cátaros e patarinos. António entrou na liça com eles, pondo em atividade todas as reservas espirituais acumuladas anteriormente na solidão e os seus extensos conhecimentos teológicos e bíblicos. Em Rimini encontrou forte oposição nos hereges, que impediam o povo de assistir aos sermões. Então recorreu o Santo à eficácia do milagre. Diante da apatia do público pela palavra de Deus, foi à costa do Adriático e começou a pregar aos peixes, dizendo: «Ouvi a palavra de Deus, vós peixes do mar e do rio, já que a não querem escutar os infiéis hereges». Falando ele assim, acudiram peixes em multidão mostrando as cabeças fora da água. Este milagre despertou grande entusiasmo na cidade, ficando os hereges envergonhados. Foi tão eficaz a acção apostólica de António contra eles, que os antigos biógrafos chamaram-lhe incansável martelo dos hereges. Passados uns anos de apostolado eficaz, foi nomeado professor de teologia. Informado S. Francisco da sabedoria e santidade que tinha, e convencido da necessidade de estudo dos seus frades para mais completo desenvolvimento da Ordem, enviou-lhe a seguinte carta: «A frei António, meu bispo, frei Francisco, saúde em Cristo: Apraz-me que interpreteis aos demais frades a sagrada teologia, contanto que este estudo não apague neles o espírito da santa oração e devoção, segundo os princípios da regra. Adeus». Com o beneplácito do santo fundador, foi Santo António o primeiro Leitor de teologia que teve a Ordem franciscana. Pouco durou esse magistério no estudo dos franciscanos de Bolonha, pois as necessidades gerais da Igreja reclamaram a sua presença para converter os hereges; mas, apesar do apurado zelo e da atividade incansável, a heresia mostrava-se cada dia mais pujante. Diante de tal perigo, mobilizou o Papa todos os pregadores que – por zelo, ciência e santidade de vida – fossem capazes de lançar-se a uma cruzada eficaz de apostolado, a fim de convencer os hereges da falsidade da sua doutrina. Entre os escolhidos figurava Santo António. O primeiro campo de batalha foi Mompilher (Montpellier), onde ensinou António a sagrada teologia aos religiosos da sua Ordem; daí passou a Tolosa (Toulose) para exercer o mesmo ministério, que alternava com o apostolado entre o povo. «Dia e noite – diz Assídua – tinha discussões com os hereges; punha-lhes com grande clareza o dogma católico; refutava vitoriosamente os preceitos deles, revelando em tudo ciência admirável e força suave de persuasão que penetrava na alma dos seus contrários». De Tolosa passou o santo a Le Puy, Bourges, Limoges e Arles. Por causa de ocupar o cargo de custódio de Limoges, viu-se obrigado a assistir ao Capítulo Geral convocado por frei Elias, em Assis, para 30 de Maio de 1227, no qual foi eleito António ministro provincial de Romanha, cargo que desempenhou com êxito até ao ano de 1230. Por fins de 1229, mandou-o Deus a Pádua, diz Rolandinho - «dos confins da Hespéria e dos países do ocidente, isto é, das terras da Galiza, a Sevilha e Lisboa – o homem religioso e santo, célebre pelas suas virtudes e conhecimento literários, arca do Antigo Testamento e forma do novo e, se me é lícito usar esta expressão, poderoso em obras e palavras. Este habitou com os seus irmãos em Pádua; mas espiritualmente habitava o céu». Por indicação do cardeal de Óstia, dedicou-se ali António à composição de sermões para todas as festividades dos principais santos e para os domingos do ano. A solidão e o retiro do convento de Arcella, junto de Pádua, convidavam ao recolhimento e ao estudo necessários para levar a termo a composição duma obra de tão vastas proporções. Também se lhe atribuem uma exposição do Saltério e algumas outras obras. Ao chegar a Quaresma, suspendeu António o estudo para dedicar-se de novo à pregação. Era tão vivo o zelo a devorar-lhe o coração, que se propôs pregar durante os 40 dias contínuos da Quaresma, o que levou a cabo, apesar da hidropisia maligna que o afligia. Era tanto o entusiasmo do povo, que se lançava sobre ele para lhe cortar pedaços do hábito. Com o fim de impedir cenas destas, foi disposto que, terminado o sermão, desaparecesse António ocultamente ou saísse escoltado por um piquete de homens valentes que impedissem a aproximação. Consumido pelo esforço e pela enfermidade, retira-se Santo António à solidão de Arcella, em Camposampiero. Aí, a doença que o afligia anunciou o fatal desenlace. Recebidos os santos sacramentos, cantou a Nossa Senhora ao mesmo tempo que fixava o olhar num ponto luminoso, invisível para os então presentes, esboçando nos lábios um sorriso beatifico. O religioso que assistia perguntou-lhe na intimidade que era o que via, ao que respondeu o santo: «Vejo o meu Senhor». Depois estendeu os braços, juntou as palmas das mãos em atitude humilde e dialogou com os religiosos a reza dos salmos penitenciais. Ao terminar, entrou em profundo êxtase que durou meia hora; voltando a si, fitou pela última vez os presentes, sorrindo-lhes, e a sua alma santíssima, desligada dos laços da carne, foi absorvida nos abismos dos resplendores divinos. Era sexta-feira, dia 13 de Junho de 1231. Logo que expirou, as crianças de Pádua correram a cidade gritando: «Morreu o santo! Morreu santo António!». Deus quis glorificar-lhe o sepulcro operando por sua intercessão grande número de milagres, o que levou as autoridades eclesiásticas a pensar em canonizá-lo. Fê-lo o papa Gregório IX, quando não tinha ainda passado um ano a contar da sua morte. O mesmo Gregório IX concedeu-lhe então a missa de Doutor, que ininterruptamente foi celebrada na sua festa. Pio XII fez-se intérprete da tradição de séculos quando, no dia 16 de Janeiro de 1946, o proclamou Doutor da Igreja, atribuindo-lhe o título de Doutor Evangélico, por meio da Carta Apostólica que principia com o seguinte elogio: «Alegra-te, feliz Lusitânia; salta de júbilo, Pádua ditosa, pois gerastes para a terra e para o céu um varão que bem pode comparar-se com um astro rutilante, já que brilhando, não só pela santidade de vida e gloriosa fama de milagres, mas também pelo esplendor que por todas as partes derrama a sua celestial doutrina, alumiou e ainda continua alumiando o mundo inteiro com luz fulgidíssima». Santo António não perdeu actualidade e a sua memória é evocada constantemente pelo povo cristão, que vê nele o santo que ressuscita os mortos, que sara as enfermidades, que foi dotado com o dom de bilocação, que falou aos peixes, que converteu os hereges, que alivia o bolso dos ricos em proveito dos pobres necessitados, que assegura e multiplica as provisões, que suaviza os obstáculos que dificultam contraírem-se matrimónios, que encontra as coisas perdidas e que amigavelmente conversa com o Menino Jesus. A experiência quotidiana ensina que Santo António não desilude nunca a esperança dos devotos, confiados no seu valimento diante do trono do Altíssimo. Ocorrendo em 1981 os 750 anos a partir da morte de Santo António, foi aberto no mês de Janeiro o seu túmulo. Apareceu o esqueleto sem carne mas muito bem conservado, faltando-lhe apenas o antebraço esquerdo e o maxilar inferior, que em séculos passados lhe foram tirados para relíquias. Da análise do esqueleto, levada a cano pelos métodos mais modernos da electrónica, conclui-se que o santo: não viveu só 36 anos como até agora se pensava, mas 39 e nove meses; tinha de altura 1,68 m; era de perfil nobre, de corpo pouco robusto; a saliência nos ossos dos joelhos mostra que devia passar longas horas a rezar ajoelhado; o desenvolvimento dos ossos das pernas é sinal de ter andado muito. Em 1934 foi declarado padroeiro de Portugal, como já era considerado há muito. Com permanente presença honrosa na literatura e arte popular portuguesa, Santo António foi sempre o padrinho dos seus portugueses que, não tanto no título de igrejas paroquiais mas em muitíssimas capelas e muitíssimos altares, o veneraram sempre com fé das suas almas e o esplendor dos seus festejos. Na oratória portuguesa, prestou-lhe grande homenagem o Padre António Vieira, em nove dos seus geniais sermões. Nem faltaram também a honrá-lo igualmente a escultura, a pintura, a poesia, a música e o típico folclore português. Costuma-se-lhe rezar o seguinte responso em verso: