Reflexão de
D. Joaquim Gonçalves
sobre o Ano Paulino
1 - Na transmissão e herança dos valores e responsabilidades familiares e escolares, há filhos e alunos que vivem do nome e do prestígio dos seus pais e mestres, e, ao contrário, há pais e professores que saem do anonimato pelo nome dos filhos e alunos. Por isso, nuns casos apresentamos alguém dizendo que «é filho ou aluno de determinada pessoa», e, noutros casos, que «aquele homem ou mulher são os pais ou os professores de alguém». Num caso, a luz do passado ilumina o futuro, a água jorra da montanha para o vale; no outro caso, é onda do mar que reflui sobre a nascente.
É isso que acontece com Timóteo e Tito: chamamos-lhes discípulos de Paulo, seus cooperadores e continuadores, Paulo é a referência. A própria Igreja colocou a sua festa no dia a seguir ao 25, dia da conversão de Paulo, como dois ribeiros que prolongam a nascente.
Seguindo este critério, vamos nesta semana falar das «cartas pastorais», que S. Paulo lhes dirigiu.
2 - Timóteo é o nome grego (temente, adorador de Deus) de um homem jovem, filho e neto de mulheres judias (a mãe Eunice e a avó Lóide) e de pai grego, não judeu, residentes em Listra (actual Turquia). Quando Paulo por ali passou nas primeiras viagens apostólicas, ao ouvir o testemunho da comunidade acerca dele, levou-o consigo. Para evitar futuros conflitos com os judeus, e embora só a mãe fosse judia, Paulo aconselhou-o a circuncidar-se. Timóteo será o discípulo predilecto de Paulo e acompanhou-o na segunda e terceira viagem. Foi mais tarde enviado em missão especial a Tessalónica, Macedónia e Corinto, e com Paulo é o remetente de seis cartas paulinas. Como era muito novo e algo tímido, Paulo acompanhou-o de perto e, depois da ordenação, aconselhou-o a aprofundar o mistério da sua ordenação, a cultivar a «fortaleza» de espírito, e deu-lhe até orientações sobre a alimentação, recomendando o uso de um pouco de vinho. Acompanhou Paulo no primeiro cativeiro, e, após a libertação, ele mandou-o ficar em Éfeso, a capital da região, a dirigir a comunidade local. Dirigiu-lhe duas cartas, uma delas da Macedónia e outra de Roma, durante o seu último cativeiro, já próximo do martírio. Seria a última carta do Apóstolo. A tradição venera Timóteo como bispo de Éfeso.
Tito é o nome latino de outro discípulo e companheiro de Paulo. Era gentio de nascimento e nunca foi circuncidado, acompanhando Paulo ao concílio de Jerusalém. Mais velho que Timóteo, seria incumbido de uma missão delicada a Corinto, bem sucedida. Compartilhou o segundo cativeiro de Paulo (2 Tim4,20) e, depois de liberto, foi enviado em missão à Dalmácia e fixou-se em Creta como bispo dessa ilha cuja população, de origem fenícia, tinha fama de mau carácter. Ainda hoje chamar «cretino» a alguém é humilhante, e prefere-se dizer «cretense». Paulo enviou-lhe uma carta.
3 - As três «cartas pastorais» não são cartas de índole pessoal mas de natureza pastoral, e por isso a linguagem é semelhante nas três, uma linguagem objectiva e impessoal, ainda que com algumas referências pessoais.
São todas da última fase da vida de Paulo, depois do ano 60. A 1ª carta a Timóteo e a carta a Tito devem ter sido enviadas da Macedónia; a 2ª carta a Timóteo foi a última carta de Paulo, enviada da prisão de Roma já próximo do ano 67, o ano da morte de Paulo. Ao saber que Timóteo andava abatido e desanimado por ver que o Evangelho só trazia sofrimentos, Paulo chamou-o a Roma para o animar e a carta 2Tim contém uma catequese sobre o mistério do sofrimento de Cristo na fé cristã.
O conteúdo geral das três cartas é o mesmo: a vigilância dos Pastores contra as heresias e as doutrinas de falsos doutores da época, e o zelo na organização interna da hierarquia. A exposição é serena e clara. Aparecem aí os termos técnicos de «diáconos», «presbíteros» ou «anciãos», «bispos», «vigilantes», «supervisores». Tais palavras, retiradas da cultura grega, ainda não têm um sentido rigoroso, e dariam origem aos termos actuais de «diácono», «presbítero» e «bispo», os três graus do sacramento da Ordem, com um sentido rigoroso, o que não acontecia no tempo de Paulo em que o sentido era oscilante: «Presbítero» aplicava-se tanto ao «padre» como ao «bispo» de hoje; e «diácono» tinha frequentemente o sentido comum de ajudante, servidor, e, por isso, aplicava-se tanto a homens como a mulheres, as «diaconisas» e «servidoras», incluindo nessa designação as esposas dos diáconos, as que auxiliavam no baptismo de imersão das mulheres e nas reuniões domésticas. Por isso, da linguagem das cartas pastorais nada se pode concluir sobre a «ordenação» de mulheres na Igreja.
4 - Vale a pena ler devagar as três cartas e pela ordem referida. Repare-se na linguagem firme, entrecortada de palavras de grande afectividade: trata os dois como «filhos», pede-lhes especial zelo na doutrina e que não se precipitem em conferir ordens sacras a qualquer homem. A Timóteo recomenda que estude, que reze, e, se tiver de repreender os idosos, o faça com moderação e respeito, que seja reservado no trato com mulheres e firme na disciplina das celebrações. A 2ª carta a Timóteo é a carta do pastor no Outono da vida, repassada de uma ternura adulta, com algumas desilusões mas grato para com os que lutaram com ele pelo nome de Jesus. Refere pelo nome próprio homens e mulheres e fala de objectos pessoais: os «pergaminhos» (a sua «biblioteca pessoal» que contribuiria para a formação do Novo Testamento), o manto ou capote de agasalho nas noites frias da Turquia, nas viagens pelo mar e aconchego no frio das prisões!
Dada esta informação cultural, somos convidados, na fidelidade ao espírito do Ano Paulino, a fazer reflexão pessoal. Como pais, professores, educadores, párocos e padres em geral, responsáveis pelos quadros futuros da Igreja e da sociedade, interroguemo-nos sobre o empenho em preparar os quadros do futuro. Se há o cuidado de observar as pessoas, de escolher e convido pessoalmente, como fez Paulo; se se conhecem os feitios e capacidades pessoais, o que requer proximidade; se se acompanham na sua preparação, na acção e formação permanente.
Além disso, como membro da comunidade cristã, o cristão é chamado a depor sobre os candidatos no processo de ordens: dá-se o testemunho com lealdade ou fica-se no «socialmente correcto»?
Dos objectos de uso pessoal, que vão encontrar os herdeiros (filhos, alunos, seminaristas) no espólio pessoal: - Um crucifixo no escritório, uma Bíblia na mesinha de cabeceira, um terço no fogão de sala ou sobre a lareira, um Catecismo da Igreja Católica, diplomas da comunhão e crisma dos filhos, alguns livros de oração e de informação cristã, contas e livros em ordem? Ou somente livros de cheques, computadores, jóias e fatos, romances mundanos, televisores, os carros na garagem e os primitivos manuais escolares?
Reler as três «cartas pastorais» como quem lê as memórias de um grande líder.
D. Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real
António Fonseca