Simbolismo e significados do Apocalipse: interpretação exegética do Livro da Revelação - parte 1
O Apocalipse, cujo título no grego é αποκάλυψις (apokálypsis), que significa "revelação" (traduzido literalmente: 'tirar o véu'), é o último livro da Bíblia Sagrada. Complexo e profundamente místico, está repleto de símbolos, alegorias e comparações. Trata-se de uma leitura extremamente difícil, até para teólogos e pesquisadores gabaritados. A compreensão deste livro, sem dúvida, está além do alcance do leigo comum e também dos curiosos em geral. Por isso mesmo, é mais fácil cair na tentação de manipular certas passagens, deturpando-as e usando-as fora de contexto, para justificar qualquer opinião pessoal.
Como é de conhecimento geral, certos embusteiros da fé têm usado desses artifícios desonestos para atacar a Igreja de Cristo, chegando a dizer que é a Igreja a "Prostituta" e/ou a "Grande Babilônia", e o Papa a "Besta" citados no livro do Apocalipse. Para começarmos a ler um pouco melhor este livro tão difícil, é essencial possuirmos algum conhecimento exegético prévio. Com este artigo, pretendemos ao menos lançar alguma luz sobre o tema e abrir caminhos para uma leitura mais madura e realista de um texto sagrado tão maltratado e manipulado por ignorantes e desonestos.
Para muitos, o Apocalipse é um livro que fala somente de destruição, catástrofe e fim do mundo. Ao iniciar a sua leitura, não são poucos aqueles que, impressionados, assustam-se e desistem. Outros tantos utilizam os textos para caluniar pessoas e religiões. A verdade inegável é que a linguagem do Apocalipse é estranha para o leigo, saturada de simbolismos e alegorias desconhecidas. Raros são aqueles que sabem por onde começar a decifrá-lo.
Temas como a Besta do Apocalipse (na realidade são duas Bestas, a primeira e a segunda), o Anticristo e o número 666, entre outros, têm sido motivo de muita confusão, sempre aumentada por espetaculares produções cinematográficas que tratam o assunto com total liberdade (e irresponsabilidade). Não são poucos os que se apressam em apontar, nos tempos atuais, algum "anti-Cristo" ao qual poderiam ser atribuídas as descrições do Apocalipse: com inquieta curiosidade e sem nenhum receio, especulam ansiosamente, com muito atrevimento mas sem fundamentar as supostas evidências que enxergam por todos os lados. Nos acontecimentos dos nossos tempos, enxergam suas próprias "verdades" sobre toda a simbologia contida no Livro da Revelação, sem desconfiar que seus reais significados estão vinculados a um outro tempo específico, dentro de contextos históricos alheios à atualidade.
Considerações gerais
Para começar este trabalho exegético, consideramos importante explicar alguns elementos que servem como material sólido (e historicamente correto) para interpretar o texto. Optamos pela tradução bíblica da edição brasileira da Bíblia de Jerusalém.
Gênero literário
O Livro da Revelação, Apocalipse de João ou ainda Apocalipse de Jesus Cristo segundo João, corresponde, precisamente, ao gênero literário denominado "apocalíptico", que floresceu na literatura hebraica por quatro séculos, de 2aC até 2dC. A literatura apocalíptica depende da literatura profética e da sapiencial. Porém, diferentemente da literatura profética, onde o elemento essencial é "a Palavra", na apocalíptica o elemento essencial é "a Visão". Outra característica do gênero apocalíptico é o uso abundante de símbolos.
A estrutura de um texto apocalíptico divide-se sempre em três fases:
1. Uma etapa de opressão ao Povo de Deus;
2. Uma etapa de castigo e destruição do inimigo;
3. Uma etapa de libertação, vitória e domínio do Povo de Deus.
No Apocalipse, é importante distinguir o ensinamento, que há por detrás da Visão, do relato que narra a Visão. O conteúdo apocalíptico é escatológico ao invés de histórico, motivo pelo qual o seu ensino perdura até o fim dos tempos. No entanto, em sua dimensão histórica, o relato se refere a um tempo concreto, específico. É sob essa ótica que o Apocalipse deve ser interpretado, se quisermos obter o correto entendimento dos seus significados. Além disso, mediante uma boa hermenêutica, podemos proceder a uma constante atualização do seu conteúdo doutrinário.
No Antigo ou Primeiro Testamento (AT) encontramos literatura apocalíptica em Isaías, Ezequiel, Judite, Zacarias e Daniel. No Novo Testamento, encontramos textos apocalípticos em Marcos, Mateus e Lucas, quando narram o discurso escatológico de Jesus; em algumas passagens paulinas, nas epístolas aos Tessalonicenses e 1Coríntios; e, finalmente, como é óbvio, no próprio livro da Revelação ou Apocalipse.
Chaves de interpretação
Para entender mais perfeitamente o conteúdo do livro do Apocalipse, é necessário primeiro conhecer o conteúdo e os símbolos contidos no livro do profeta Daniel; por sua vez, para entender os símbolos de Daniel, é preciso conhecer e entender os símbolos usados pelo profeta Ezequiel; para entender o significado da segunda Besta, é imprescindível compreender o significado da primeira Besta, e assim por diante. Esse procedimento coeso é de fundamental importância no estudo. Ao compreendermos os simbolismos de Ezequiel e Daniel, por exemplo, a exegese do Apocalipse de João resulta em um processo mais simples e natural. Oferecer a interpretação de toda esta simbologia está fora do alcance deste nosso trabalho: esta observação visa conscientizar o estudioso que deseja realmente aprofundar-se no tema por conta própria.
Os Apocalipses (pois existem diversos) foram desenvolvidos numa época de opressão. No caso concreto do Apocalipse de João, foi escrito no ano 95, segundo a opinião majoritária. Nesse tempo, Domiciano exigia o "culto imperial", ainda mais que seus predecessores Vespasiano e Tito. É neste contexto histórico que devemos buscar o verdadeiro significado dos simbolismos empregados por João.
Simbologia dos números no Apocalipse
Todos os números usados no Apocalipse têm significado específico. Conhecê-los ajuda a entender os símbolos do texto. Neste primeiro momento de estudo, convém conhecer os seguintes:
Número 2 - Significa solidez, é usado para reforçar uma determinada realidade; como por exemplo: 2 testemunhas, 2 chifres, etc.;
Número 3 - Perfeição;
Número 6 - Um a menos que o 7; significa imperfeição;
Número 7 - Plenitude, totalidade, inteireza;
Número 666 - O célebre e enigmático "número do Anticristo", que já deu margem a tantas e diversas interpretações, muitas absurdas, designa 3 vezes o número 6, isto é, a máxima imperfeição, a oposto absoluto daquilo que é perfeito.
Breve resumo do Livro do Apocalipse
Logo ao abrir o Livro da Revelação, os três primeiros versículos são um resumo de tudo o que encontraremos adiante. É a porta de entrada da “casa”: a primeira palavra que aparece é “revelação”. A principal finalidade do livro é motivar à resistência, porque os primeiros cristãos viviam tempos muito difíceis. Vemos que a Revelação vem de Deus, por meio de Jesus, para seus servos. Os servos de Jesus são os seus seguidores e profetas.
O Apocalipse é um livro urgente. Não foi escrito para que, ao lê-lo, pudéssemos prever o futuro, mas sim para motivar pessoas a resistirem à opressão e a serem profetas e profetizas, pelo bem da Igreja. O que encontramos no Apocalipse são sinais, e a função do sinal é apontar para algo que ainda não vemos: o caminho que precisa ser percorrido.
O Apocalipse está repleto de Anjos. Quem são? Num primeiro momento são os representantes de Deus, que comunicam algo ou uma missão especial. Num segundo momento, representam os responsáveis pelas "igrejas", que são as comunidades da Igreja então existentes. Outro tema que já aparece no início do livro é o valor e a importância do testemunho dos santos; no texto original em grego, martiria, que nesse contexto significa testemunhar Jesus, Deus feito homem que foi morto, ressuscitou e venceu a morte, tornando-se Senhor da História e da Vida. O Apocalipse é também um livro da felicidade: já no início, anuncia a primeira bem-aventurança: "Feliz aquele que lê e escuta as palavras desta profecia" (1,3).
"Sete igrejas"?
Assim como as nossas celebrações católicas, até hoje, iniciam-se com a saudação: “A Graça e Paz de Nosso Senhor Jesus Cristo estejam convosco...”, João inicia o seu Apocalipse da mesma maneira(1,4-8). João faz essa Saudação às "sete igrejas" da Ásia, e aqui cabe um esclarecimento importantíssimo: a doutrina católica ensina que só há uma Igreja de Cristo, una e indivisível. O Livro do Apocalipse, no entanto, menciona a existência de sete igrejas, somente na Ásia, já naquele tempo. Alguns membros de comunidades ditas pentecostais e neopentecostais, assim como de diversas novas seitas autodenominadas "cristãs", vêm interpretando essas citações do Apocalipse como se constituíssem uma suposta "prova" de que a Igreja de Cristo não é uma só. Para estes, as menções às "sete igrejas" demonstrariam que, desde o princípio, não houve uma só Igreja, e sim uma diversidade de "igrejas" diferentes e independentes entre si, unidas apenas pela fé na Ressurreição de Jesus e na observação das Escrituras.
Na realidade, essa concepção é totalmente equivocada: tanto teologicamente quanto historicamente falando, nada poderia ser mais falso. Se cremos na Bíblia como Sagrada, como Palavra inspirada por Deus, precisamos crer nela como um conjunto coerente e harmonioso, cujos livros se integram e complementam para proclamar a única Mensagem Divina para toda a humanidade. Sendo assim, a Bíblia não pode proclamar uma Verdade Revelada numa página e, logo a seguir, negar ou contrariar esta mesma Verdade em outra página. Analisemos a questão observando esta coerência da hermenêutica bíblica:
No Evangelho segundo Lucas, Jesus mesmo diz que "todo reino dividido contra si mesmo acaba em ruínas" (Lc 11,17). Na Carta aos Efésios, o Apóstolo Paulo afirma que só há uma Igreja, que é Una, pois existe em "um só Corpo e um só Espírito", que professa "um só Senhor, um só Batismo e uma só Fé" (Ef 4,5). Logo, se existissem apenas duas "igrejas" diferentes, com doutrinas diferentes e "batismos" próprios, necessariamente uma delas não poderia ser a autêntica Igreja de Jesus Cristo. No entanto, o que vemos hoje são muitos milhares de "igrejas", uma verdadeira infinidade de denominações ditas "cristãs", cada qual proclamando um tipo de fé completamente diferente das demais. Dentre estas, algumas dizem que o batismo não é condição para a salvação, outras dizem que sem o batismo ninguém se salva; algumas aceitam o divórcio, outras não; algumas praticam o que chamam de "santa ceia", outras não; algumas pregam a famigerada "teologia da prosperidade", outas a condenam; etc, etc...
Fica, portanto, evidente que só pode haver uma única Igreja de Cristo autêntica, e esta Igreja só pode ser a mais antiga, a única que provém dos Apóstolos e guarda a sua Tradição, conforme eles mesmos nos orientaram: "Mandamo-vos, porém, irmãos, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que vos aparteis de todo irmão que não anda segundo a tradição que de nós recebeu" (2Ts 3,6). A Igreja original precisa ser aquela por meio da qual Jesus se dá no Pão e no Vinho, Igreja que se reúne em torno da Sagrada Eucaristia (conf. 1Cor 11,29). Precisa ser a Igreja que cumpre a profecia de Maria Santíssima, que, cheia do Espírito Santo, declarou de si mesma: "Todas as gerações me chamarão Bem-aventurada" (Lc 1, 48). Através do estudo aprofundado da Bíblia Sagrada, vemos claramente que a Igreja de Jesus Cristo só pode ser a Igreja Católica Apostólica Romana, e nenhuma outra. Mas, sendo assim, como explicar a menção às "sete igrejas" no Apocalipse?
Como já vimos, no contexto do Apocalipse, o número 7 significa totalidade, plenitude; Segundo este princípio, o texto alude a sete anjos, sete cartas, sete selos, sete montes, sete trombetas, sete reis, sete candelabros, sete estrelas, etc... e também sete "igrejas". Tudo isso indica totalidade: a mensagem é dirigida à Igreja de Cristo em sua totalidade, a todos os filhos e filhas da Igreja, a todos os membros do Corpo Místico de Cristo, que é a própria Igreja, representada nas "sete igrejas" da Ásia.
Quando fala em "sete igrejas", o autor se refere às diferentes comunidades da única Igreja situadas nas localidades de Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia, de modo muito semelhante ao qual, atualmente, nos referimos às nossas muitas comunidades ou paróquias, dizendo, por exemplo: "visitei a 'Igreja da Sé'", ou "conheci a 'igreja da Natividade do Senhor de Caruarú'".
Não está errado dizer "Igreja da Sé", e "Igreja da Natividade do Senhor", mas não são igrejas diferentes, distintas, independentes uma da outra, e sim comunidades irmãs que pertencem a uma única Igreja, que é Católica (Universal), Apostólica (procede dos Apóstolos) e Romana (somente porque a sua sede primacial, isto é, o endereço físico do sucessor de Pedro, está localizado em Roma).
Uma outra maneira de comprovar essa realidade é observar que, de do mesmo modo, ainda que todo o conjunto dos textos da Bíblia afirme e reafirme, insistentemente, que há um só Deus, que é Pai, Filho e Espírito Santo, sendo o Espírito Santo o responsável por todas as experiências de Deus no Apocalipse, João fala dos “Sete Espíritos de Deus” (Ap 4,5). - Assim como no caso da Igreja de Cristo, o texto também salienta a Plenitude do Espírito Santo, que é Um só, - através do número que representa a totalidade e a plenitude: uma Igreja, representada por "sete igrejas", um Espírito, representado por "sete Espíritos".
Continua aqui
_____________
Bibliografia
1- RICHARD, Pablo. Apocalipse - Reconstrução da Esperança, 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1996.
2- BORTOLINI, Pe. José. Como ler o Apocalipse, Resistir e Denunciar. São Paulo: Paulus, 2008.
3- GALVÃO, Antônio Mesquita. Apocalipse ao Alcance de Todos. São Paulo: O Recado, 2009.
5- CORSINI, Eugênio. O Apocalipse de São João - Grande Comentário Bíblico. São Paulo: Paulinas, 1992.
6- MESTERS, Carlos. Esperança de um Povo que Luta - O Apocalipse de São João, uma Chave de Leitura. São Paulo: Paulus, 1991.
Referência bibliográfica:
Edição Brasileira da Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1991.
The New American Bible. Nashville: Catholic Bible Press, 1987.
CARRILLO, S. El Apocalipsis. C. México: Instituto de Pastoral Bíblica, , 1998.NUTTING, M. And God Say What?. New York: Paulist Press, 1986.YATES, K. Nociones Esenciales del Hebreo Biblico. New York:Harper & Row Publishers, 1984.
Outras fontes:
RIVERO, Pe. Jordi. Apostolado Veritatis Splendor: A prostituta do Apocalipse, a Grande Babilônia. Disponível em http://www.veritatis.com.br/apologetica/105-igreja-papado/603-a-prostituta-do-apocalipse-a-grande-babilonia desde 11/12/2006; tradução: Carlos Martins Nabeto.
* Este artigo contém trechos baseados em texto do Padre Ademir Nunes Faria.