NOTA PRÉVIA:
Apesar de ser muito extenso, decidi publicar também o presente texto pois faz parte dos artigos inseridos no site http://ecclesia.pt/anopaulino. As minhas desculpas pelo espaço que vou ocupar.
AI DE MIM, SE EU NÃO ANUNCIAR O EVANGELHO (1Cor 9,16)
S. PAULO E A MISSÃO EVANGELIZADORA
É providencial a coincidência entre o segundo milénio do nascimento de S. Paulo e o Sínodo dos Bispos, dedicado à Palavra de Deus – que se celebrará no próximo mês de Outubro, no Vaticano – uma feliz coincidência que nos impele, a todos nós, presbíteros e leigos, a motivar novamente a urgência da missão com o mesmo espírito que assinalou a acção evangelizadora do apóstolo dos gentios.
No ensaio Ide e anunciai. Fundamentos e desafios da missão, já tivemos a oportunidade de nos deter na expressão ousada de Paulo «ai de mim se eu não anunciar o Evangelho», retirada da primeira carta aos coríntios, dizendo: «As palavras de Paulo (…) devem constituir um compromisso irrenunciável para a Igreja apostólica. Esta tem a tarefa indeclinável de fazer chegar aos homens de cada tempo a palavra divino-humana do Salvador com toda a sua frescura e eficácia salvífica. A actividade missionária não só não perdeu nada da sua actualidade, mas revestiu-se antes de particular urgência nos nossos dias» (pag.238)
Pretendemos agora deter-nos de forma especial sobre a urgência que Paulo dedica à missão: de onde brota a sua acção missionária na Igreja e em favor dela? Qual é o conteúdo insubstituível da sua evangelização? Porque é que anunciar o evangelho não é para ele um motivo de glória, nem uma livre opção, mas antes um dever? E, finalmente, qual é o objectivo da instância missionária da Igreja no nosso tempo?
1 – A identidade missionária de Paulo
Não raro, pensamos em Paulo de Tarso como se tivesse sido um filósofo, colocado ao mesmo nível dos maiores pensadores da humanidade, ou um dos teólogos mais originais e profundos da história da Igreja. De facto ele é também um dos maiores pensadores, um dos conhecedores mais agudos da mente humana, um dos místicos mais arrojados da Igreja, que chegou mesmo a ser «arrebatado ao céu, tendo ai ouvido palavras inexprimíveis que a ninguém é lícito pronunciar» (2Cor 12,4). Eis como S. João Crisóstomo no seu livro De Sacerdotio (4,9) exalta o génio a santidade de Paulo: «Se demandasse a eloquência de Sócratres, a grandeza de Demóstenes, a gravidade de Tucídides e a sublimidade de Platão, teria que evocar o testemunho de Paulo.»
Paulo, no entanto, define-se a si mesmo antes de mais como sendo um missionário, um apóstolo, «escolhido desde o seio para anunciar a Cristo entre os gentios» (Gl 1,15 – 16) ou seja, entre aqueles que não pertenciam ao povo eleito. «Apóstolo por vocação» (Rm 1,1), nunca se concebeu sem esta característica que o levou a cruzar, ao longe e ao largo, as principais províncias do Império romano, para «se fazer fraco com os fracos, a fim de ganhar os fracos, fazendo-se tudo para todos, a fim de salvar alguns a qualquer custo» (1Cor 9,22). É por isso que logo no início das suas cartas começa por se apresentar como «apóstolo de Jesus Cristo por vontade de Deus» (1 Cor 1,1), «eleito de antemão para anunciar o Evangelho de Deus» (Rm 1,1).
O seu novo bilhete de identidade, validado após o encontro com o Ressuscitado no caminho de Damasco, é antes de mais o de um missionário que, na força do Espírito, leva o Evangelho até aos confins da terra (Act 1,8). A sua identidade de Apóstolo está de tal modo arraigada nele que não é possível distingui-la da sua dimensão humana, com todo o conjunto de qualidades e defeitos que esta implica.
2 – Conteúdo da missão Paulina
O conteúdo indelével da missão Paulina é o Evangelho, a ponto de o levar a afirmar que faz tudo pelo Evangelho (1Cor 9,23): a sua vida consumiu-se total e exclusivamente pelo Evangelho. Entretanto, sobre este tema do Evangelho como conteúdo essencial da existência de Paulo, devemos esclarecer alguns pontos mais em particular. No nosso tempo assistimos infelizmente, por um lado, à moda da difusão dos Evangelhos gnósticos, redigidos no século II d. C. e, por outro, ao escasso contacto dos próprios cristãos com os quatro Evangelhos transmitidos pela Igreja do Novo Testamento, caindo alguns na presunção de os conhecer só por deles terem ouvido falar. Sem negar a utilidade da leitura das fontes cristãs das origens, mesmo se caracterizadas por uma tendência gnóstica – a qual tende a desvalorizar a via da encarnação – não podemos ignorar a importância dos Evangelhos e das cartas de Paulo, as quais têm no Evangelho o seu centro unificador.
Se o anúncio do Evangelho, pela palavra e com a vida, é tão central para Paulo, é porque o Evangelho não se reduz a uma mera narração, identificando-se, antes, pelo contrário, com uma pessoa, a pessoa de Cristo: «Pois nós não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus, como o Senhor» (2Cor 4,5). Jesus Cristo, o Senhor, é o conteúdo do Evangelho de Paulo; ele que, com a sua morte de cruz, se tornou para nós «sabedoria, justiça, santificação e redenção» (1Cor 1,30).
Perante um qualquer Deum meramente humano, sempre insuficiente, com os seus mil e um modos de buscar a Deus, como que tacteando por entre as trevas da história humana, prevalece o facto de, como Paulo lembra aos Coríntios, por puro dom da graça, «o Filho de Deus, Jesus Cristo, que nós vos anunciámos, não ser um “sim” e um “não”, mas apenas um “sim”, pois nele todas as promessas de Deus foram um “sim”» (2Cor 1,19–20). No mistério imperscrutável da cruz de Cristo, encontra-se o “sim” fiel de Deus ao homem, de Deus que, por amor, «não poupou o seu próprio Filho, mas o entregou a morte por todos nós» (Rm 8,32). É precisamente neste “sim” de Deus em Cristo, diríamos, com Paulo que ele se idêntica com o Evangelho da Reconciliação: «era Deus que reconciliava o mundo consigo em Cristo, não imputando aos homens os seu pecados e confiando-nos a palavra da reconciliação. É em nome de Cristo, portanto que exercemos a função de embaixadores» (2 Cor 5,19 – 20).
Em Cristo, Deus veio ao encontro de cada pessoa de forma plena, de modo definitivo e permanente, inundando-a com o seu amor a ponto de mudar a sua existência a partir do mais profundo do seu ser: «o amor de Cristo» circunda-nos de tal modo que «nos sustenta» (2Cor 5,14) para que não continuemos «a viver para nós mesmos, mas para Aquele que por nós morreu e ressuscitou» (2Cor 5,15).
Para Paulo, ser Apóstolos significa passar a ser instrumentos e servos da graça, do amor de Cristo, levando a todos e a cada um o Evangelho da reconciliação e da misericórdia de Deus: d’aquele que, por própria iniciativa, «derramou o seu amor nos nossos corações por meio do Espírito e nos foi dado» (Rm 5,5). Ora é toda a Igreja e não só alguns que é confinada a missão de levar a Boa Nova a cada ser humano, em ligar e canto da terra.
Sublinhava-o com grande vigor o Servo de Deus, Paulo VI, quando, na exortação apostólica Evangelli Nuntiandi diz que «o mandato» dado aos Apóstolos – “ide por todo o mundo e anunciai a boa–nova” – continua a ser válido, se bem que de modo diverso, para todos e cada um dos cristãos.
É precisamente por isso que São Pedro os designa como “Povo que Deus adquiriu a fim de proclamar as maravilhas daquele que vos chamou” (cf. 1Ped 2,9), essas mesmas maravilhas que cada um pôde escutar na sua própria língua materna (cf. Act 2,11). De resto, a Boa-Nova do reino (…) é para todos os homens de todos os tempos. Aqueles que a recebem e ela congrega na comunidade da salvação, podem e devem comunica-la e difundi-la ulteriormente (EN 13).
3 – Pregar o Evangelho não é para Paulo um motivo de glória, mas um dever
À luz do que dissemos, podemos compreender bem Paulo quando afirma: «Para mim, evangelizar não é um título de glória, mas um dever.
Ai de mim se não anunciar o Evangelho» (1Cor 9,15). Isto também podem – e devem! – dizer todos os cristãos em virtude do seu baptismo.
De facto, a vocação baptismal é fundamentalmente uma vocação apostólica, missionária, evangelizadora. Somos cristãos na medida em que formos apóstolos, missionários, evangelistas.
Em especial, Paulo sente o anúncio do evangelho como dever, tomando em sentido escrito, por duas razões fundamentais: uma cristológica e outra eclesiológica.
Antes de mais por uma razão cristológica. A ânsia missionária do apostolo promana da sua identificação com Cristo. É Ele o centro e o ápice da sua vida. Paulo está apaixonado por Aquele que lhe apareceu no caminho de Damasco. O objectivo da sua vida não é outro senão o de se identificar completamente com Ele. O Apóstolo é categórico a tal respeito: «Para mim viver é Cristo e morrer um lucro» (Fl 1,20): «eu vivo, mas já não sou eu que vivo: é Cristo que vive me mim» (Gl 2,20). Se Cristo, o Senhor, representa o conteúdo da missão de Paulo, Ele passa também a ser a sua vida, a sua respiração, o seu caminho nas estradas do mundo.
Ora bem, o Cristo com o qual Paulo se identifica, é o Cristo missus a Padre, o Enviado, o Missionário do Pai, que se encarnou para anunciar a salvação, o maior dom de Deus, a qual não só é libertação de tudo aquilo que oprime o homem, mas que é sobretudo libertação do pecado e da morte (cf. EN 9). Sendo assim, a identificação de Paulo com Cristo deve ser compreendida na linha de uma identificação com Cristo missus, com o Missionário do Pai. Eis porque evangelizar não é, para Paulo, um motivo de glória, mas antes um dever.
Além disso, há uma razão eclesiológica. Cristo continua a viver na Igreja. Esta não é, afinal de contas, outra coisa senão Cristo encarnado numa comunidade de fé, de esperança e de amor, o qual assim prossegue a sua missão de salvação entre os homens que se vão sucedendo ao longo dos tempos. Santo Agostinho diz a propósito: «a Igreja é Cristo que se ama a si mesmo» (cf. Agostinho, Enarrat. 88, Sermo 2,14: PL 37,1140;EN 16).
Se Cristo é o missionário do Pai, então a Igreja é a missionária de Cristo. Nascida da missão, ela é, por sua vez, enviada ao mundo por Jesus (cf. EN 15).
Tocamos aqui a dimensão missionária da Igreja. «O mandato de evangelizar todos os homens constitui a sua dimensão essencial» (Sínodo dos Bispos de 1974, sobre a evangelização), «tarefa e missão», repete Paulo VI, «que as grandes e profundas mudanças da sociedade actual não tornaram menos urgente. Evangelizar é, de facto, a graça e a vocação próprio da Igreja, a sua identidade mais profunda. Ela existe para evangelizar» (EN 14). Uma Igreja que não estivesse em contínua tensão missionária, não seria a verdadeira Igreja de Cristo.
Em termos religiosamente lógicos, não se devia, pois, falar de Igreja e de missões. Existe uma Igreja Missionária. Existe uma missão da Igreja. Não se trata de duas realidades, mas de uma só realidade eclesial.
(José Saraiva Martins, Ide e anunciai, p. 91).
Tal é a segunda razão da afirmação de Paulo. Como apaixonado por Cristo e pela sua Igreja, por Ele enviada ao mundo para Evangelizar, para Paulo o anúncio do Evangelho não podia ser uma opção, mas antes um dever. Ele sentia-se na obrigação de ser, na sua vida, a expressão viva da missão de Cristo e da sua Esposa bem–amada.
4 - Paulo e a missão de hoje
A mensagem de Paulo é da mais premente actualidade para a Igreja missionária de hoje. Ela pode ser resumida em dez princípios fundamentais, que podemos designar como o “Decálogo da nova evangelização”, a observar para uma maior eficácia da missão nos nossos dias.
Evangelizar, anunciando Cristo, nunca poderá reduzir–se a uma mera forma de falar ou de comunicar o Evangelho graças a discursos cativantes. A primeira via para a missão e acção evangelizadora da Igreja é a própria vida pessoal, imbuída por uma relação vital e existencial com Cristo. Constrangido a defender o seu apostolado perante os seus adversários, Paulo não pede para comparar discursos sábios ou formas atraentes de falar de Jesus Cristo, mas evoca antes os sinais visíveis da paixão do Senhor, que fazem dele um alter christus, um ícone visível de Cristo: «São ministros de Cristo? Falo a delirar: eu ainda mais. Muito mais pelos trabalhos, muito mais pelas prisões, imensamente mais pelos açoites…» (2Cor 11,23).
A nossa palavra deve ser cada vez mais, dia após dias, um sermo corporis, uma pregação que não se limite à palavra – a qual no fim de contas não é difícil de pronunciar, pois basta um bom curso de oratória para disso ser capaz – mas uma pregação credível, que passe antes de mais pelo testemunho da vida, pelos sinais da cruz de Cristo impressos na realidade do nosso corpo: «Trazemos sempre no nosso corpo a necrose (o morrer quotidianamente um pouco mais) de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste no nosso corpo. De facto, estando ainda vivos, somos continuamente expostos à morte por causa de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste na nossa carne mortal» (2 Cor 4,10-11). A importância do testemunho na evangelização, foi-nos recordada de forma especial por Paulo VI, o qual observa: «O homem contemporâneo escuta de melhor vontade as testemunhas do que os mestres e escuta os mestres, porque eles são testemunhas» (EN 41).
Comunicar o Evangelho aos homens e às mulheres do nosso tempo, caracterizado pelos mass media, requer o uso dos novos meios de comunicação, de novas estratégias de evangelização, de uma linguagem constantemente actualizada. Paulo VI sublinha-o, afirmando que «a Igreja viria a sentir-se culpável perante o seu Senhor, se não lançasse mão destes meios potentes que a inteligência humana tem aperfeiçoado dia após dia…
Neles encontra uma versão moderna e eficaz do púlpito; graças a eles consegue falar às multidões» (EN 45)
A este propósito, podemos perguntar-nos como é que Paulo, não tendo tido à sua disposição os actuais mass media, tão evoluídos – ele nunca viajou na rede, conseguiu falar e fazer-se compreender por todos bem e melhor do que nós. É que o seu coração se tinha transformado no coração de Cristo, tendo falado muito mais alto a sua vida, os trabalhos que passou por causa do Evangelho, a sua disponibilidade para enfrentar todo o tipo de perigos a fim de testemunhar o amor de Cristo. Num dos Panegíricos sobre S. Paulo, nota S. João Crisóstomo: «Grande como era naquilo que representa o Cúmulo de todos os bens, o amor, ele foi mais ardente do que qualquer outra chama. Tal como o ferro que cai no fogo, passa a ser fogo, também ele, inflamado no fogo do amor se fez todo amor.» (3,9)
Nunca se deve esquecer que na missão de cada um está presente e activa a missão de toda a Igreja: cada pessoa é missionária da Igreja, como a Igreja é missionária de Cristo e Cristo é missionário do Pai.
Apesar de indiscutível originalidade do seu Evangelho, Paulo nunca se esquece que, seguindo na esteira dos apóstolos que precederam, tem o dever de anunciar tudo o que recebeu da Igreja, e só o que dela recebeu: «Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as escrituras; e apareceu a Cefas» (1Cor 15,3-5).
Toda a acção e estratégia missionárias nascem da acção do espírito na Igreja. A missão tem uma dimensão essencialmente pneumatológica. O espírito é o princípio dinâmico da missão e da escuta do Evangelho. Ele age na Igreja como a lama no corpo (Agostinho, sermão 267,4: PL 38,1231; cf. L 6,7, nota 8). Por isso, Lucas, o evangelista recorda-nos que logo no início das viagens missionárias de Paulo e de Barnabé, estando os cristãos de Antioquia «a celebrar o culto em honra do Senhor e a jejuar", lhes disse o Espírito Santo: “separai Barnabé e Paulo para o trabalho a que Eu os chamei.» (Act 13,2).
A missão cria a comunhão entre aqueles que, dela sendo destinatários, acolhem o Evangelho. É por isso que da missão de Paulo nascem e se vão difundindo comunidades cristãs nas províncias do império. A sua missão não se limita, porém, à mera inculturação do Evangelho no respeito pelas culturas em que este se encarna, embora tal dimensão continue a ser imprescindível: graças à acção do Espírito, ela é capaz de criar vínculos de comunhão mais profundos do que quaisquer vínculos naturais ou meramente humanos. Se nas cartas de Paulo um dos primeiros termos a aparecer é, com frequência, a palavra «apóstolo», uma das últimas é a palavra «comunhão», como se pode constar na 2ª carta aos Coríntios: «A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a Comunhão do Espírito Santo estejam em todos vós» (2 Cor 13,13).
A missão do evangelho, que passa a ser comunhão entre os irmãos, é um dos traços distintivos do modo como Paulo concebe as relações eclesiais. Vejamos como recorda a primeira evangelização dos Tessalonicenses: “enchemo-nos de afecto enquanto estivermos entre vós, tal como uma mãe que acalenta os seus filhos quando os alimenta. Sentíamos tanta afeição por vós, que desejámos ardentemente partilhar convosco não só o Evangelho de Deus, mas também a própria vida, tão caros vos tínheis tornado para nós” (1Ts 2,7-8).
Embora reconheçamos a importância de um itinerário pedagógico, a Relação que Paulo estabelece com as suas comunidades supera os limites da mera formação, a ponto de chegar a ser uma relação paterna profunda, única no seu género: «De facto, ainda que tivésseis dez mil pedagogos em Cristo, não teríeis muitos pais, porque fui eu que vos gerei em Cristo Jesus, por meio do Evangelho» (1Cor 4,15) dirá ele aos Coríntios que estavam a trair o seu amor de pai. Eis como S. João Crisóstomo comenta com acuidade a profunda paternidade de Paulo em relação às suas comunidades: «Como se fosse o pai comum de todos, não só imitou os pais, mas chegou mesmo a ultrapassá-los, por causa dos desvelos, de natureza material e espiritual, com que os rodeava, dispensando em favor daqueles que eram objecto do seu amor, os bens materiais, as palavras, o corpo e alma, enfim tudo» (Panegírico 3,9).
Gerar para a fé mediante o Evangelho é a missão mais estimulante e difícil que se pode confiar a quem, como Paulo, sabe ser Apóstolo do Evangelho. E tal como todo o processo de gestação, também o do evangelho passa por diversas fases de sofrimento e de provação: «Meus filhos, por quem sinto novamente dores de parto, até que Cristo seja em vós!» (Gl 4,19), confessa ele aos Gálatas com intensa paixão. O mesmo Cristo que ganhou forma na palavra e na vida do evangelizador, é gerado nos destinatários, passando pelos sofrimentos de quem se consome por eles até ao fim, apesar de não raro não chegar a saborear o fruto de tantas canseiras, e acabando, antes pelo contrário, por experimentar a falta de correspondência ao seu amor: «Não compete aos filhos entesourar para os pais, mas sim os pais para os filhos. Quanto a mim, de bom grado darei o que tenho e dar-me-ei a mesmo inteiramente por vós. Será por vos ter mais amor que por vós menos amado sou?» (2Cor 12,14-15).
Nesta passagem, Paulo expressa toda a sua ternura e os «ciúmes» de quem não admite as intromissões estranhas de outros evangelizadores, no relacionamento que estabelece com as suas comunidades: «Sinto por vós um ciúme semelhante ao ciúme de Deus, pois vos desposei com um único esposo, Cristo, a quem devo apresentar-vos como virgem pura» (2Cor 11,2). Quer dizer isto, se pensarmos que a estada de Paulo junto das comunidades por ele fundadas durante a sua acção evangelizadora, foram bastante fugazes, tendo prolongado apenas por alguns meses ou muito poucos anos, preocupado como ele estava em anunciar Cristo nas regiões mais remotas (2 Cor 10,16) a fim de levar a bom termo a missão que lhe fora confiada: «Quanto a mim, o meu sangue já está pronto para ser derramado em libação, chegou o tempo de soltar as amarras. Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé» (2Tm 4,6-7), confessa ele, no testamento espiritual a Timóteo, seu fiel colaborador.
No entanto, o ciúme de Paulo nunca cai em formas de possessão ou de exclusividade em relação àqueles que gerou para a fé. Muito pelo contrário: ele respeita decididamente a liberdade e a responsabilidade de cada pessoa: «Não é porque pretendemos agir como senhores da vossa fé; queremos, antes, contribuir para a vossa alegria» (2 Cor 1,24). Nenhuma comunidade, fundada graças à missão dos apóstolos, é propriedade de Paulo, de Pedro ou de Apolo, mas é de Cristo, que a adquiriu com o preço do Seu sangue, a fim de fazer santa (E 1,6). A cada apóstolo é confiada a única Igreja de Cristo, enquanto «administrador dos mistérios de Deus. Ora, o que se pede a um administrador é que seja fiel» (1Cor 4,1-2) ao encargo que lhe foi confiado em virtude da vocação e não por direito adquirido da parte de Cristo.
Finalmente, à luz do pensamento Paulino, a Igreja missionária deve ser
Antes de mais, uma verdadeira comunidade de irmãos, edificada no amor de Cristo e dos irmãos, animada pelo espírito das bem-aventuranças. No nosso tempo, a Igreja tem de redescobrir o valor da pobreza no seguimento de Cristo, para poder estar em condições de falar quer aos pobres, quer aos ricos, livre de compromissos sociais ou políticos, anunciando Cristo com toda a franqueza; uma Igreja assinalada pela cruz de Cristo, respeitadora das culturas que evangeliza e nas quais o Evangelho se encarna; uma igreja alegre no testemunho, portadora de esperança aos homens e mulheres que encontra e, acima de tudo, assistida e guiada pelo Espírito de Cristo.
Conclusão
No ano dedicado ao Apóstolo dos gentios, temos de redescobrir a urgência da missão, a qual não se identifica com o proselitismo, constrangendo os outros a adoptar o nosso modo de pensar e de ver, nem se reduz a uma mera inculturação do Evangelho, mas que antes é uma encarnação da Palavra de Deus na multiplicidade de condições humanas, línguas e costumes das pessoas que se vão encontrando.
A exclamação Paulina
«Ai de mim se eu não anunciar o evangelho»,
é igualmente válida para todo aquele que, sendo leigo, presbítero ou bispo, recebeu das mãos da Igreja o Evangelho, esse mesmo Evangelho que deve propagar como se difunde «o perfume de Cristo» (2Cor 2,15) entre aqueles que estão perto e os que estão longe. Façamos nossa também a interpelação endereçada por Paulo à Igreja no que respeita ao mistério audaz e difícil da missão: «como hão-de invocar o Senhor, se antes não tiverem acreditado nele? E como hão-de acreditar, se dele não ouviram falar? E como hão-de ouvir falar, sem haver alguém que o anuncie? E como hão-de anunciar, sem primeiro terem sido ouvidos? Tal como está escrito: Quão belos são os pés dos que anunciam a boa-nova» (Rm 10,14-15). Se «a fé nasce da escuta, e a escuta nasce da Palavra de Cristo» (Ro 10,17), então a nossa responsabilidade perante o Evangelho que nos foi confiado no início do nosso apostolado é grande; uma responsabilidade de que seremos chamados a prestar contas no termo da nossa existência.
O Senhor não quer que acabemos por desvalorizar o Evangelho que foi depositado em nós como «um tesouro, em vasos de barro» (2Cor 4,7), mas quer antes que arrisquemos tudo para o fazer comercializável e vendível. Jesus Cristo em pessoa é o tesouro, achado no meio do campo, pelo qual vale a pena vender quanto possuímos e somos, a fim de o adquirir. Por ele somos chamados a considerar tudo como «lixo, a fim de ganhar Cristo e nele achados» (Fl 3,8-9). O Evangelho completa a sua carreira com os pés cansados, cobertos de pó e não raro feridos, com os pés de quem, como Paulo, «nada mais quis saber, a não ser Jesus Cristo e este crucificado» (1Cor2,2)
Tal é a mensagem, da mais desconcertante actualidade, que Paulo transmite à Igreja missionária dos nossos dias.
Lisboa, 18 de Julho de 2008
José Card. Saraiva Martins
Perfeito da Congregação das Causas dos Santos
LOUVADO SEJA DEUS,
LOUVADO SEJA NOSSO SENHOR JESUS CRISTO,
LOUVADA SEJA MARIA NOSSA SENHORA,
POR TODOS OS SÉCULOS DOS SÉCULOS. AMÉN
António Fonseca