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domingo, 8 de fevereiro de 2009

ANO PAULINO - Artigos (7)

NOTA PRÉVIA:
Apesar de ser muito extenso, decidi publicar também o presente texto pois faz parte dos artigos inseridos no site http://ecclesia.pt/anopaulino. As minhas desculpas pelo espaço que vou ocupar.
AI DE MIM, SE EU NÃO ANUNCIAR O EVANGELHO (1Cor 9,16)

S. PAULO E A MISSÃO EVANGELIZADORA

É providencial a coincidência entre o segundo milénio do nascimento de S. Paulo e o Sínodo dos Bispos, dedicado à Palavra de Deusque se celebrará no próximo mês de Outubro, no Vaticano – uma feliz coincidência que nos impele, a todos nós, presbíteros e leigos, a motivar novamente a urgência da missão com o mesmo espírito que assinalou a acção evangelizadora do apóstolo dos gentios.

No ensaio Ide e anunciai. Fundamentos e desafios da missão, já tivemos a oportunidade de nos deter na expressão ousada de Paulo «ai de mim se eu não anunciar o Evangelho», retirada da primeira carta aos coríntios, dizendo: «As palavras de Paulo (…) devem constituir um compromisso irrenunciável para a Igreja apostólica. Esta tem a tarefa indeclinável de fazer chegar aos homens de cada tempo a palavra divino-humana do Salvador com toda a sua frescura e eficácia salvífica. A actividade missionária não só não perdeu nada da sua actualidade, mas revestiu-se antes de particular urgência nos nossos dias» (pag.238)

Pretendemos agora deter-nos de forma especial sobre a urgência que Paulo dedica à missão: de onde brota a sua acção missionária na Igreja e em favor dela? Qual é o conteúdo insubstituível da sua evangelização? Porque é que anunciar o evangelho não é para ele um motivo de glória, nem uma livre opção, mas antes um dever? E, finalmente, qual é o objectivo da instância missionária da Igreja no nosso tempo?
1 – A identidade missionária de Paulo
Não raro, pensamos em Paulo de Tarso como se tivesse sido um filósofo, colocado ao mesmo nível dos maiores pensadores da humanidade, ou um dos teólogos mais originais e profundos da história da Igreja. De facto ele é também um dos maiores pensadores, um dos conhecedores mais agudos da mente humana, um dos místicos mais arrojados da Igreja, que chegou mesmo a ser «arrebatado ao céu, tendo ai ouvido palavras inexprimíveis que a ninguém é lícito pronunciar» (2Cor 12,4). Eis como S. João Crisóstomo no seu livro De Sacerdotio (4,9) exalta o génio a santidade de Paulo: «Se demandasse a eloquência de Sócratres, a grandeza de Demóstenes, a gravidade de Tucídides e a sublimidade de Platão, teria que evocar o testemunho de Paulo

Paulo, no entanto, define-se a si mesmo antes de mais como sendo um missionário, um apóstolo, «escolhido desde o seio para anunciar a Cristo entre os gentios» (Gl 1,15 – 16) ou seja, entre aqueles que não pertenciam ao povo eleito. «Apóstolo por vocação» (Rm 1,1), nunca se concebeu sem esta característica que o levou a cruzar, ao longe e ao largo, as principais províncias do Império romano, para «se fazer fraco com os fracos, a fim de ganhar os fracos, fazendo-se tudo para todos, a fim de salvar alguns a qualquer custo» (1Cor 9,22). É por isso que logo no início das suas cartas começa por se apresentar como «apóstolo de Jesus Cristo por vontade de Deus» (1 Cor 1,1), «eleito de antemão para anunciar o Evangelho de Deus» (Rm 1,1).

O seu novo bilhete de identidade, validado após o encontro com o Ressuscitado no caminho de Damasco, é antes de mais o de um missionário que, na força do Espírito, leva o Evangelho até aos confins da terra (Act 1,8). A sua identidade de Apóstolo está de tal modo arraigada nele que não é possível distingui-la da sua dimensão humana, com todo o conjunto de qualidades e defeitos que esta implica.
2 – Conteúdo da missão Paulina

O conteúdo indelével da missão Paulina é o Evangelho, a ponto de o levar a afirmar que faz tudo pelo Evangelho (1Cor 9,23): a sua vida consumiu-se total e exclusivamente pelo Evangelho. Entretanto, sobre este tema do Evangelho como conteúdo essencial da existência de Paulo, devemos esclarecer alguns pontos mais em particular. No nosso tempo assistimos infelizmente, por um lado, à moda da difusão dos Evangelhos gnósticos, redigidos no século II d. C. e, por outro, ao escasso contacto dos próprios cristãos com os quatro Evangelhos transmitidos pela Igreja do Novo Testamento, caindo alguns na presunção de os conhecer só por deles terem ouvido falar. Sem negar a utilidade da leitura das fontes cristãs das origens, mesmo se caracterizadas por uma tendência gnóstica – a qual tende a desvalorizar a via da encarnação – não podemos ignorar a importância dos Evangelhos e das cartas de Paulo, as quais têm no Evangelho o seu centro unificador.

Se o anúncio do Evangelho, pela palavra e com a vida, é tão central para Paulo, é porque o Evangelho não se reduz a uma mera narração, identificando-se, antes, pelo contrário, com uma pessoa, a pessoa de Cristo: «Pois nós não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus, como o Senhor» (2Cor 4,5). Jesus Cristo, o Senhor, é o conteúdo do Evangelho de Paulo; ele que, com a sua morte de cruz, se tornou para nós «sabedoria, justiça, santificação e redenção» (1Cor 1,30).

Perante um qualquer Deum meramente humano, sempre insuficiente, com os seus mil e um modos de buscar a Deus, como que tacteando por entre as trevas da história humana, prevalece o facto de, como Paulo lembra aos Coríntios, por puro dom da graça, «o Filho de Deus, Jesus Cristo, que nós vos anunciámos, não ser um “sim” e um “não”, mas apenas um “sim”, pois nele todas as promessas de Deus foram um “sim”» (2Cor 1,19–20). No mistério imperscrutável da cruz de Cristo, encontra-se o “sim” fiel de Deus ao homem, de Deus que, por amor, «não poupou o seu próprio Filho, mas o entregou a morte por todos nós» (Rm 8,32). É precisamente neste “sim” de Deus em Cristo, diríamos, com Paulo que ele se idêntica com o Evangelho da Reconciliação: «era Deus que reconciliava o mundo consigo em Cristo, não imputando aos homens os seu pecados e confiando-nos a palavra da reconciliação. É em nome de Cristo, portanto que exercemos a função de embaixadores» (2 Cor 5,19 – 20).
Em Cristo, Deus veio ao encontro de cada pessoa de forma plena, de modo definitivo e permanente, inundando-a com o seu amor a ponto de mudar a sua existência a partir do mais profundo do seu ser: «o amor de Cristo» circunda-nos de tal modo que «nos sustenta» (2Cor 5,14) para que não continuemos «a viver para nós mesmos, mas para Aquele que por nós morreu e ressuscitou» (2Cor 5,15).
Para Paulo, ser Apóstolos significa passar a ser instrumentos e servos da graça, do amor de Cristo, levando a todos e a cada um o Evangelho da reconciliação e da misericórdia de Deus: d’aquele que, por própria iniciativa, «derramou o seu amor nos nossos corações por meio do Espírito e nos foi dado» (Rm 5,5). Ora é toda a Igreja e não só alguns que é confinada a missão de levar a Boa Nova a cada ser humano, em ligar e canto da terra.
Sublinhava-o com grande vigor o Servo de Deus, Paulo VI, quando, na exortação apostólica Evangelli Nuntiandi diz que «o mandato» dado aos Apóstolos“ide por todo o mundo e anunciai a boa–nova” – continua a ser válido, se bem que de modo diverso, para todos e cada um dos cristãos.
É precisamente por isso que São Pedro os designa como “Povo que Deus adquiriu a fim de proclamar as maravilhas daquele que vos chamou” (cf. 1Ped 2,9), essas mesmas maravilhas que cada um pôde escutar na sua própria língua materna (cf. Act 2,11). De resto, a Boa-Nova do reino (…) é para todos os homens de todos os tempos. Aqueles que a recebem e ela congrega na comunidade da salvação, podem e devem comunica-la e difundi-la ulteriormente (EN 13).
3 – Pregar o Evangelho não é para Paulo um motivo de glória, mas um dever
À luz do que dissemos, podemos compreender bem Paulo quando afirma: «Para mim, evangelizar não é um título de glória, mas um dever. Ai de mim se não anunciar o Evangelho» (1Cor 9,15). Isto também podem – e devem! – dizer todos os cristãos em virtude do seu baptismo. De facto, a vocação baptismal é fundamentalmente uma vocação apostólica, missionária, evangelizadora. Somos cristãos na medida em que formos apóstolos, missionários, evangelistas.
Em especial, Paulo sente o anúncio do evangelho como dever, tomando em sentido escrito, por duas razões fundamentais: uma cristológica e outra eclesiológica.
Antes de mais por uma razão cristológica. A ânsia missionária do apostolo promana da sua identificação com Cristo. É Ele o centro e o ápice da sua vida. Paulo está apaixonado por Aquele que lhe apareceu no caminho de Damasco. O objectivo da sua vida não é outro senão o de se identificar completamente com Ele. O Apóstolo é categórico a tal respeito: «Para mim viver é Cristo e morrer um lucro» (Fl 1,20): «eu vivo, mas já não sou eu que vivo: é Cristo que vive me mim» (Gl 2,20). Se Cristo, o Senhor, representa o conteúdo da missão de Paulo, Ele passa também a ser a sua vida, a sua respiração, o seu caminho nas estradas do mundo. Ora bem, o Cristo com o qual Paulo se identifica, é o Cristo missus a Padre, o Enviado, o Missionário do Pai, que se encarnou para anunciar a salvação, o maior dom de Deus, a qual não só é libertação de tudo aquilo que oprime o homem, mas que é sobretudo libertação do pecado e da morte (cf. EN 9). Sendo assim, a identificação de Paulo com Cristo deve ser compreendida na linha de uma identificação com Cristo missus, com o Missionário do Pai. Eis porque evangelizar não é, para Paulo, um motivo de glória, mas antes um dever. Além disso, há uma razão eclesiológica. Cristo continua a viver na Igreja. Esta não é, afinal de contas, outra coisa senão Cristo encarnado numa comunidade de fé, de esperança e de amor, o qual assim prossegue a sua missão de salvação entre os homens que se vão sucedendo ao longo dos tempos. Santo Agostinho diz a propósito: «a Igreja é Cristo que se ama a si mesmo» (cf. Agostinho, Enarrat. 88, Sermo 2,14: PL 37,1140;EN 16).
Se Cristo é o missionário do Pai, então a Igreja é a missionária de Cristo. Nascida da missão, ela é, por sua vez, enviada ao mundo por Jesus (cf. EN 15).
Tocamos aqui a dimensão missionária da Igreja. «O mandato de evangelizar todos os homens constitui a sua dimensão essencial» (Sínodo dos Bispos de 1974, sobre a evangelização), «tarefa e missão», repete Paulo VI, «que as grandes e profundas mudanças da sociedade actual não tornaram menos urgente. Evangelizar é, de facto, a graça e a vocação próprio da Igreja, a sua identidade mais profunda. Ela existe para evangelizar» (EN 14). Uma Igreja que não estivesse em contínua tensão missionária, não seria a verdadeira Igreja de Cristo.
Em termos religiosamente lógicos, não se devia, pois, falar de Igreja e de missões. Existe uma Igreja Missionária. Existe uma missão da Igreja. Não se trata de duas realidades, mas de uma só realidade eclesial.
(José Saraiva Martins, Ide e anunciai, p. 91).
Tal é a segunda razão da afirmação de Paulo. Como apaixonado por Cristo e pela sua Igreja, por Ele enviada ao mundo para Evangelizar, para Paulo o anúncio do Evangelho não podia ser uma opção, mas antes um dever. Ele sentia-se na obrigação de ser, na sua vida, a expressão viva da missão de Cristo e da sua Esposa bem–amada.
4 - Paulo e a missão de hoje
A mensagem de Paulo é da mais premente actualidade para a Igreja missionária de hoje. Ela pode ser resumida em dez princípios fundamentais, que podemos designar como o “Decálogo da nova evangelização”, a observar para uma maior eficácia da missão nos nossos dias.
Evangelizar, anunciando Cristo, nunca poderá reduzir–se a uma mera forma de falar ou de comunicar o Evangelho graças a discursos cativantes. A primeira via para a missão e acção evangelizadora da Igreja é a própria vida pessoal, imbuída por uma relação vital e existencial com Cristo. Constrangido a defender o seu apostolado perante os seus adversários, Paulo não pede para comparar discursos sábios ou formas atraentes de falar de Jesus Cristo, mas evoca antes os sinais visíveis da paixão do Senhor, que fazem dele um alter christus, um ícone visível de Cristo: «São ministros de Cristo? Falo a delirar: eu ainda mais. Muito mais pelos trabalhos, muito mais pelas prisões, imensamente mais pelos açoites…» (2Cor 11,23).
A nossa palavra deve ser cada vez mais, dia após dias, um sermo corporis, uma pregação que não se limite à palavra – a qual no fim de contas não é difícil de pronunciar, pois basta um bom curso de oratória para disso ser capaz – mas uma pregação credível, que passe antes de mais pelo testemunho da vida, pelos sinais da cruz de Cristo impressos na realidade do nosso corpo: «Trazemos sempre no nosso corpo a necrose (o morrer quotidianamente um pouco mais) de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste no nosso corpo. De facto, estando ainda vivos, somos continuamente expostos à morte por causa de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste na nossa carne mortal» (2 Cor 4,10-11). A importância do testemunho na evangelização, foi-nos recordada de forma especial por Paulo VI, o qual observa: «O homem contemporâneo escuta de melhor vontade as testemunhas do que os mestres e escuta os mestres, porque eles são testemunhas» (EN 41).
Comunicar o Evangelho aos homens e às mulheres do nosso tempo, caracterizado pelos mass media, requer o uso dos novos meios de comunicação, de novas estratégias de evangelização, de uma linguagem constantemente actualizada. Paulo VI sublinha-o, afirmando que «a Igreja viria a sentir-se culpável perante o seu Senhor, se não lançasse mão destes meios potentes que a inteligência humana tem aperfeiçoado dia após dia… Neles encontra uma versão moderna e eficaz do púlpito; graças a eles consegue falar às multidões» (EN 45)
A este propósito, podemos perguntar-nos como é que Paulo, não tendo tido à sua disposição os actuais mass media, tão evoluídos – ele nunca viajou na rede, conseguiu falar e fazer-se compreender por todos bem e melhor do que nós. É que o seu coração se tinha transformado no coração de Cristo, tendo falado muito mais alto a sua vida, os trabalhos que passou por causa do Evangelho, a sua disponibilidade para enfrentar todo o tipo de perigos a fim de testemunhar o amor de Cristo. Num dos Panegíricos sobre S. Paulo, nota S. João Crisóstomo: «Grande como era naquilo que representa o Cúmulo de todos os bens, o amor, ele foi mais ardente do que qualquer outra chama. Tal como o ferro que cai no fogo, passa a ser fogo, também ele, inflamado no fogo do amor se fez todo amor.» (3,9)

Nunca se deve esquecer que na missão de cada um está presente e activa a missão de toda a Igreja: cada pessoa é missionária da Igreja, como a Igreja é missionária de Cristo e Cristo é missionário do Pai.
Apesar de indiscutível originalidade do seu Evangelho, Paulo nunca se esquece que, seguindo na esteira dos apóstolos que precederam, tem o dever de anunciar tudo o que recebeu da Igreja, e só o que dela recebeu: «Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as escrituras; e apareceu a Cefas» (1Cor 15,3-5).
Toda a acção e estratégia missionárias nascem da acção do espírito na Igreja. A missão tem uma dimensão essencialmente pneumatológica. O espírito é o princípio dinâmico da missão e da escuta do Evangelho. Ele age na Igreja como a lama no corpo (Agostinho, sermão 267,4: PL 38,1231; cf. L 6,7, nota 8). Por isso, Lucas, o evangelista recorda-nos que logo no início das viagens missionárias de Paulo e de Barnabé, estando os cristãos de Antioquia «a celebrar o culto em honra do Senhor e a jejuar", lhes disse o Espírito Santo: “separai Barnabé e Paulo para o trabalho a que Eu os chamei.» (Act 13,2).
A missão cria a comunhão entre aqueles que, dela sendo destinatários, acolhem o Evangelho. É por isso que da missão de Paulo nascem e se vão difundindo comunidades cristãs nas províncias do império. A sua missão não se limita, porém, à mera inculturação do Evangelho no respeito pelas culturas em que este se encarna, embora tal dimensão continue a ser imprescindível: graças à acção do Espírito, ela é capaz de criar vínculos de comunhão mais profundos do que quaisquer vínculos naturais ou meramente humanos. Se nas cartas de Paulo um dos primeiros termos a aparecer é, com frequência, a palavra «apóstolo», uma das últimas é a palavra «comunhão», como se pode constar na 2ª carta aos Coríntios: «A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a Comunhão do Espírito Santo estejam em todos vós» (2 Cor 13,13).
A missão do evangelho, que passa a ser comunhão entre os irmãos, é um dos traços distintivos do modo como Paulo concebe as relações eclesiais. Vejamos como recorda a primeira evangelização dos Tessalonicenses: “enchemo-nos de afecto enquanto estivermos entre vós, tal como uma mãe que acalenta os seus filhos quando os alimenta. Sentíamos tanta afeição por vós, que desejámos ardentemente partilhar convosco não só o Evangelho de Deus, mas também a própria vida, tão caros vos tínheis tornado para nós” (1Ts 2,7-8).
Embora reconheçamos a importância de um itinerário pedagógico, a Relação que Paulo estabelece com as suas comunidades supera os limites da mera formação, a ponto de chegar a ser uma relação paterna profunda, única no seu género: «De facto, ainda que tivésseis dez mil pedagogos em Cristo, não teríeis muitos pais, porque fui eu que vos gerei em Cristo Jesus, por meio do Evangelho» (1Cor 4,15) dirá ele aos Coríntios que estavam a trair o seu amor de pai. Eis como S. João Crisóstomo comenta com acuidade a profunda paternidade de Paulo em relação às suas comunidades: «Como se fosse o pai comum de todos, não só imitou os pais, mas chegou mesmo a ultrapassá-los, por causa dos desvelos, de natureza material e espiritual, com que os rodeava, dispensando em favor daqueles que eram objecto do seu amor, os bens materiais, as palavras, o corpo e alma, enfim tudo» (Panegírico 3,9).
Gerar para a fé mediante o Evangelho é a missão mais estimulante e difícil que se pode confiar a quem, como Paulo, sabe ser Apóstolo do Evangelho. E tal como todo o processo de gestação, também o do evangelho passa por diversas fases de sofrimento e de provação: «Meus filhos, por quem sinto novamente dores de parto, até que Cristo seja em vós!» (Gl 4,19), confessa ele aos Gálatas com intensa paixão. O mesmo Cristo que ganhou forma na palavra e na vida do evangelizador, é gerado nos destinatários, passando pelos sofrimentos de quem se consome por eles até ao fim, apesar de não raro não chegar a saborear o fruto de tantas canseiras, e acabando, antes pelo contrário, por experimentar a falta de correspondência ao seu amor: «Não compete aos filhos entesourar para os pais, mas sim os pais para os filhos. Quanto a mim, de bom grado darei o que tenho e dar-me-ei a mesmo inteiramente por vós. Será por vos ter mais amor que por vós menos amado sou?» (2Cor 12,14-15).
Nesta passagem, Paulo expressa toda a sua ternura e os «ciúmes» de quem não admite as intromissões estranhas de outros evangelizadores, no relacionamento que estabelece com as suas comunidades: «Sinto por vós um ciúme semelhante ao ciúme de Deus, pois vos desposei com um único esposo, Cristo, a quem devo apresentar-vos como virgem pura» (2Cor 11,2). Quer dizer isto, se pensarmos que a estada de Paulo junto das comunidades por ele fundadas durante a sua acção evangelizadora, foram bastante fugazes, tendo prolongado apenas por alguns meses ou muito poucos anos, preocupado como ele estava em anunciar Cristo nas regiões mais remotas (2 Cor 10,16) a fim de levar a bom termo a missão que lhe fora confiada: «Quanto a mim, o meu sangue já está pronto para ser derramado em libação, chegou o tempo de soltar as amarras. Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé» (2Tm 4,6-7), confessa ele, no testamento espiritual a Timóteo, seu fiel colaborador.
No entanto, o ciúme de Paulo nunca cai em formas de possessão ou de exclusividade em relação àqueles que gerou para a fé. Muito pelo contrário: ele respeita decididamente a liberdade e a responsabilidade de cada pessoa: «Não é porque pretendemos agir como senhores da vossa fé; queremos, antes, contribuir para a vossa alegria» (2 Cor 1,24). Nenhuma comunidade, fundada graças à missão dos apóstolos, é propriedade de Paulo, de Pedro ou de Apolo, mas é de Cristo, que a adquiriu com o preço do Seu sangue, a fim de fazer santa (E 1,6). A cada apóstolo é confiada a única Igreja de Cristo, enquanto «administrador dos mistérios de Deus. Ora, o que se pede a um administrador é que seja fiel» (1Cor 4,1-2) ao encargo que lhe foi confiado em virtude da vocação e não por direito adquirido da parte de Cristo.
Finalmente, à luz do pensamento Paulino, a Igreja missionária deve ser

Antes de mais, uma verdadeira comunidade de irmãos, edificada no amor de Cristo e dos irmãos, animada pelo espírito das bem-aventuranças. No nosso tempo, a Igreja tem de redescobrir o valor da pobreza no seguimento de Cristo, para poder estar em condições de falar quer aos pobres, quer aos ricos, livre de compromissos sociais ou políticos, anunciando Cristo com toda a franqueza; uma Igreja assinalada pela cruz de Cristo, respeitadora das culturas que evangeliza e nas quais o Evangelho se encarna; uma igreja alegre no testemunho, portadora de esperança aos homens e mulheres que encontra e, acima de tudo, assistida e guiada pelo Espírito de Cristo.
Conclusão
No ano dedicado ao Apóstolo dos gentios, temos de redescobrir a urgência da missão, a qual não se identifica com o proselitismo, constrangendo os outros a adoptar o nosso modo de pensar e de ver, nem se reduz a uma mera inculturação do Evangelho, mas que antes é uma encarnação da Palavra de Deus na multiplicidade de condições humanas, línguas e costumes das pessoas que se vão encontrando.
A exclamação Paulina
«Ai de mim se eu não anunciar o evangelho»,
é igualmente válida para todo aquele que, sendo leigo, presbítero ou bispo, recebeu das mãos da Igreja o Evangelho, esse mesmo Evangelho que deve propagar como se difunde «o perfume de Cristo» (2Cor 2,15) entre aqueles que estão perto e os que estão longe. Façamos nossa também a interpelação endereçada por Paulo à Igreja no que respeita ao mistério audaz e difícil da missão: «como hão-de invocar o Senhor, se antes não tiverem acreditado nele? E como hão-de acreditar, se dele não ouviram falar? E como hão-de ouvir falar, sem haver alguém que o anuncie? E como hão-de anunciar, sem primeiro terem sido ouvidos? Tal como está escrito: Quão belos são os pés dos que anunciam a boa-nova» (Rm 10,14-15). Se «a fé nasce da escuta, e a escuta nasce da Palavra de Cristo» (Ro 10,17), então a nossa responsabilidade perante o Evangelho que nos foi confiado no início do nosso apostolado é grande; uma responsabilidade de que seremos chamados a prestar contas no termo da nossa existência.
O Senhor não quer que acabemos por desvalorizar o Evangelho que foi depositado em nós como «um tesouro, em vasos de barro» (2Cor 4,7), mas quer antes que arrisquemos tudo para o fazer comercializável e vendível. Jesus Cristo em pessoa é o tesouro, achado no meio do campo, pelo qual vale a pena vender quanto possuímos e somos, a fim de o adquirir. Por ele somos chamados a considerar tudo como «lixo, a fim de ganhar Cristo e nele achados» (Fl 3,8-9). O Evangelho completa a sua carreira com os pés cansados, cobertos de pó e não raro feridos, com os pés de quem, como Paulo, «nada mais quis saber, a não ser Jesus Cristo e este crucificado» (1Cor2,2)
Tal é a mensagem, da mais desconcertante actualidade, que Paulo transmite à Igreja missionária dos nossos dias.
Lisboa, 18 de Julho de 2008

José Card. Saraiva Martins

Perfeito da Congregação das Causas dos Santos
LOUVADO SEJA DEUS,
LOUVADO SEJA NOSSO SENHOR JESUS CRISTO,
LOUVADA SEJA MARIA NOSSA SENHORA,
POR TODOS OS SÉCULOS DOS SÉCULOS. AMÉN
António Fonseca

ANO PAULINO - Artigos (6) - Em espanhol

El Apóstol n. 13 de Jesús por el Padre Benito Spoletini, SSP

¿Por qué se celebran eventos y personas? Es totalmente normal que las instituciones civiles, culturales y religiosas, celebren las fechas aniversarias de sus fundaciones y de las personalidades que se en ellas se han distinguido a través del tiempo. La Iglesia no va a la zaga en esto, pues en su historia milenaria hay mucho que celebrar. Se cumplen así diversas finalidades, sobre todo, la de recordar eventos (casi un desafío al reloj y a la memoria), y personalidades, echándolas a andar entre nosotros hoy, “como si estuvieran vivos hoy”, rescatando su legado al servicio de las nuevas generaciones. No es poco si pensamos en el deterioro que ha sufrido la “memoria histórica”, desde que tecnologías siempre más sofisticadas “graban” y guardan vidas y pensamiento, dejando a años luces los esfuerzos mnemónicos de nuestra niñez.
Pablo de Tarso y la Internet sumergida. El 2008 es el turno de un personaje importante, muy controvertido y poco “popular”: Pablo de Tarso, perseguidor de Jesús y luego su más grande misionero, el apóstol número 13.
Y esto va a ser en grande desde que el papa Benedicto XVI tomó la iniciativa y anunció solemnemente su fecha: del 28 de junio 2008 al 29 de junio de 2009.

¿Motivo? Celebrar los dos mil años de su nacimiento. Los medios, una vez tanto, han segundado el anuncio, dándole un gran relieve, debido también a su alcance “ecuménico”, pues, san Pablo goza de mucha estimación en las confesiones cristianas no católicas. Pero, una vez más, Internet les ha ganado la mano, almacenado aproximadamente unas 210.000 páginas, conservando así viva la noticia para lectores, investigadores y personas que tan sólo quieren informarse.
¿Qué nos puede decir hoy? Pablo vivió en tiempos de globalización – la romana, muy parecida a la nuestra– y en ella puso a prueba su existencia privilegiada: judío de raza y religión, de cultura griega y ciudadano romano. Una vez convertido a Cristo, supo aprovechar con éxito esta situación, como él mismo lo consigna en una de sus cartas: “Me he hecho griego con los griegos, judío con los judíos, todo para todos con tal de atraer a algunos a Cristo”. Su preocupación: inculturar el Evangelio en el inmenso imperio romano, poniendo al centro de su predicación la persona de Cristo. De verdad podía afirmar enfático: “Para mí la vida es Cristo”. Fue su gran novedad. Pero no todos lo comprendieron y así se transformó en el hombre más perseguido de su tiempo. Los judíos lo consideraban un renegado, pues al anunciar a Cristo como único salvador, le endilgaban que rechazaba la Ley de Moisés. Para los griegos –cultos, dedicados a interminables discusiones sobre los dioses– era uno de los tantos charlatanes que llegaban a Atenas; y los romanos lo vigilaban como a un peligroso perturbador del orden público.
Llegó un momento que esta situación se hizo insostenible y le costó la vida, en Roma, donde fue ajusticiado, en la localidad de las “Tres Fuentes”, el año 67 d. C. La Iglesia, desde entonces, lo venera, junto a san Pedro, como fundador de la cristiandad occidental.
Un filme sobre Pablo que nunca se rodó. Pablo por su vida venturosa, su inmensa actividad misionera y sus escritos, ejerció siempre una gran fascinación sobre la gente culta – escritores, pintores, artistas, cineastas – incluso de otros credos. Un botón de muestra: su impacto en el famoso cineasta Pier Paolo Pasolini (1922-1975), que en 1968, el año de la revolución juvenil, se entregó de lleno a preparar un filme sobre la vida del Apóstol. Su radio de acción ya no sería la Palestina de su tiempo, sino que actuaría en las sedes actuales del poder, de la riqueza y de las culturas: París, Nueva York, Roma, Londres… En este proyecto, Pasolini se encontró con el padre Santiago Alberione (1884-1971), apóstol de la comunicación, fundador de la Sociedad de San Pablo y de la Familia Paulina, deseoso también de llevar a las multitudes la vida y el mensaje de un “Pablo vivo hoy”. En la película, Pablo resultaría ser un guerrillero… ante litteram más que un apóstol y el proyecto fracasó. De todos modos, quedó como una generosa y atrevida tentativa de llevar a las masas la vida y el pensamiento del mayor comunicador del Evangelio de Jesús.
¡Si me falta el amor, no me sirve de nada! En su mensaje convocatorio, Benedicto XVI indica algunas de las actividades para vivir con provecho este año: peregrinaciones, celebraciones litúrgicas, culturales, congresos de estudio, y exhorta a dar a este “Año Paulino” una particular dimensión ecuménica que apunte a la unidad de los cristianos. Con todo, creo que lo sustantivo lo sugiere el mismo Pablo: “¡Sobre todo el amor!”. Con la persona de Cristo, exitosa novedad de Pablo fue poner en el centro de su mensaje: el AMOR, como lo atestigua el “Himno” de 1ª Corintios, capítulo 13. Pablo se estremecía entero, cuando hablaba o escribía de eso, convencido como estaba que el amor al otro, a los otros, al prójimo es lo sustantivo del mensaje cristiano: con el amor todo, sin el amor nada. Y no paraba en generalidades, sino que menudeaba: el amor es paciente, benévolo, servicial, sincero, humilde, es tolerante. No es envidioso, se alegra del bien. Con gran acierto, Internet ha hospedado este “Himno al amor” con más de 2000 páginas, pues ese mensaje puede humanizar y cambiar el mundo. Con esta esperanza se lo comunicamos a nuestros cibernautas: que sea para ellos el fruto más sazonado del Año jubilar Paulino.
Segue-se: AI DE MIM, SE EU NÃO ANUNCIAR O EVANGELHO António Fonseca

ANO PAULINO - Artigos (5)

Paulo, a vida na Igreja

Completamos hoje os nossos encontros com o apóstolo Paulo, dedicando-lhe uma última reflexão. De facto, não podemos despedir-nos dele, sem considerar uma das componentes decisivas da sua actividade e um dos temas mais importantes do seu pensamento: a realidade da Igreja. Devemos antes de tudo constatar que o seu primeiro contacto com a pessoa de Jesus se realiza através do testemunho da comunidade cristã de Jerusalém. Foi um contacto conturbado. Tendo conhecido o novo grupo de crentes, ele tornou-se imediatamente um seu orgulhoso perseguidor. Ele mesmo o reconhece nas suas três Cartas: "Persegui a Igreja de Deus", escreve (1 Cor 15, 9; Gl 1, 13; Fl 3, 6), quase como a apresentar este seu comportamento como o pior dos crimes. A história mostra-nos que se alcança normalmente Jesus através da Igreja! Num certo sentido, isto verificou-se, dizíamos, também para Paulo, o qual encontrou a Igreja antes de encontrar Jesus. Mas este contacto, no seu caso, foi contraproducente, não causou a adesão, mas uma violenta repulsa. Para Paulo, a adesão à Igreja foi propiciada por uma intervenção directa de Cristo, o qual, tendo-se-lhe revelado no caminho de Damasco, se identificou com a Igreja e lhe fez compreender que perseguir a Igreja era perseguir o Senhor. De facto, o Ressuscitado disse a Paulo, o perseguidor da Igreja: "Saulo, Saulo, porque me persegues?" (Act 9, 4). Perseguindo a Igreja, perseguia Cristo. Então Paulo converteu-se, ao mesmo tempo, a Cristo e à Igreja. Disto compreende-se depois porque a Igreja tenha estado tão presente nos pensamentos, no coração e na actividade de Paulo. Em primeiro lugar, porque ele fundou literalmente muitas Igrejas nas várias cidades onde foi para evangelizar. Quando fala da sua "solicitude por todas as Igrejas" (2 Cor 11, 28), ele pensa nas várias comunidades cristãs suscitadas de cada vez na Galácia, na Iónia, na Macedónia e na Acaia. Algumas daquelas Igrejas também lhe deram preocupações e desgostos, como aconteceu por exemplo nas Igrejas da Galácia, que ele viu seguir "outro Evangelho" (Gl 1, 6), ao que se opôs com firme determinação. Contudo ele sentia-se ligado às Comunidades por ele fundadas de maneira não fria nem burocrática, mas intensa e apaixonada. Assim, por exemplo, define os Filipenses "meus caríssimos e saudosos irmãos, minha coroa e alegria" (4, 1). Outras vezes compara as várias Comunidades com uma carta de apresentação única no seu género: "A nossa carta sois vós, uma carta escrita nos nossos corações, conhecida e lida por todos os homens" (2 Cor 3, 2). Outras vezes ainda mostra em relação a eles um verdadeiro sentimento não só de paternidade mas até de maternidade, como quando se dirige aos seus destinatários interpelando-os como "Meus filhos, por quem sinto outra vez as dores de parto, até que Cristo se forme entre vós!" (Gl 4, 19; cf. também 1 Cor 4, 14-15; 1 Ts 2, 7-8). Nas suas Cartas, Paulo ilustra-nos a sua doutrina sobre a Igreja como tal. Portanto, é muito conhecida a sua original definição da Igreja como "corpo de Cristo", que não encontramos noutros autores cristãos do I século (cf. 1 Cor 12, 27: Ef 4, 12; 5, 30; Cl 1, 24). A raiz mais profunda desta surpreendente designação da Igreja encontrámo-la no Sacramento do corpo de Cristo. Diz São Paulo: "Uma vez que há um único pão, nós, embora muitos, somos um só corpo" (1 Cor 10, 17). Na mesma Eucaristia, Cristo dá-nos o seu Corpo e faz-nos seu Corpo. Neste sentido São Paulo diz aos Gálatas: "todos sois um em Cristo" (Gl 3, 28). Com tudo isto Paulo faz-nos compreender que existe não só uma pertença da Igreja a Cristo, mas também uma certa forma de equiparação e de identificação da Igreja com o próprio Cristo. Portanto, é daqui que deriva a grandeza e a nobreza da Igreja, ou seja, de todos nós que a ela pertencemos por sermos membros de Cristo, quase uma extensão da sua presença pessoal no mundo. E daqui se origina, naturalmente, o nosso dever de viver realmente em conformidade com Cristo. Daqui derivam também as exortações de Paulo a propósito dos vários carismas que animam e estruturam a comunidade cristã. Todos eles reconduzem a uma única fonte, que é o Espírito do Pai e do Filho, sabendo bem que na Igreja ninguém está desprovido dele, porque, como escreve o Apóstolo, "a cada um é dada a manifestação do Espírito, para proveito comum" (1 Cor 12, 7). Mas é importante que todos os carismas cooperem juntos na edificação da comunidade e não se tornem ao contrário motivo de dilaceração. A este propósito, Paulo pergunta retoricamente: "Estará Cristo dividido?" (1 Cor 1, 13). Ele sabe bem e ensina-nos que é necessário "manter a unidade do Espírito, mediante o vínculo da paz. Há um só Corpo e um só Espírito, assim como a vossa vocação vos chamou a uma só esperança" (Ef 4, 3-4). Sem dúvida, realçar a exigência da unidade não significa afirmar que se deva uniformizar ou nivelar a vida eclesial segundo um único modo de agir. Noutro texto Paulo ensina a "não apagar o Espírito" (1 Ts 5, 19), isto é, a dar generosamente espaço ao dinamismo imprevisível das manifestações carismáticas do Espírito, o qual é fonte de energia e de vitalidade sempre nova. Mas se há um critério do qual Paulo não prescinde é a mútua edificação: "que tudo se faça de modo a edificar" (1 Cor 14, 26). Tudo deve concorrer para construir ordenadamente o tecido eclesial, não só sem estagnação, mas também sem fugas ou excepções. Depois, há outra Carta paulina que chega a apresentar a Igreja como esposa de Cristo (cf. Ef 5, 21-33). Com isto retoma-se uma antiga metáfora profética, que fazia do povo de Israel a esposa do Deus da aliança (cf. Os 2, 4.21; Is 54, 5-8): com isto pretende-se dizer quanto sejam íntimas as relações entre Cristo e a sua Igreja, quer no sentido de que ela é objecto do amor mais terno da parte do seu Senhor, quer também no sentido de que o amor deve ser recíproco e que, por conseguinte também nós, como membros da Igreja, devemos demonstrar fidelidade apaixonada em relação a Ele.
Definitivamente, está em jogo a relação de comunhão: a vertical entre Jesus Cristo e todos nós, e também a horizontal entre todos os que se distinguem no mundo pelo facto de "invocar o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo" (1 Cor 1, 2). Esta é a nossa definição: nós pertencemos àqueles que invocam o nome do Senhor Jesus Cristo. Portanto compreende-se bem quanto seja desejável que se realize o que o próprio Paulo deseja ao escrever aos Coríntios: "Mas se todos começarem a profetizar e entrar ali um descrente qualquer ou simples ouvinte, há-de sentir-se tocado por todos, julgado por todos; os segredos do seu coração serão desvendados e, prostrando-se com o rosto por terra, adorará a Deus, proclamando que Deus está realmente no meio de vós" (1 Cor 24-25). Assim deveriam ser os nossos encontros litúrgicos. Um não cristão que entra numa assembleia nossa, no final deveria poder dizer: "Verdadeiramente Deus está convosco". Peçamos ao Senhor que sejamos assim, em comunhão com Cristo e em comunhão entre nós.
(Bento XVI, Audiência Geral, 22.11.2006)
Segue-se:
El Apóstol nº 13 de Jesús (em espanhol)
António Fonseca

ANO PAULINO - Artigos (4)

Paulo, o Espírito nos nossos corações

Também hoje, como nas duas catequeses precedentes, voltamos a São Paulo e ao seu pensamento. Estamos diante de um gigante não só a nível do apóstolo concreto, mas também da doutrina teológica, extraordinariamente profunda e estimulante. Depois de ter meditado na semana passada sobre o que Paulo escreveu acerca do lugar central que Jesus Cristo ocupa na nossa vida de fé, vemos hoje o que ele diz sobre o Espírito Santo e sobre a sua presença em nós, porque também aqui o Apóstolo tem algo muito importante para nos ensinar. Conhecemos o que São Lucas nos diz do Espírito Santo nos Actos dos Apóstolos, descrevendo o evento do Pentecostes. O Espírito pentecostal traz consigo um vigoroso estímulo a assumir um compromisso da missão para testemunhar o Evangelho pelos caminhos do mundo. De facto, o Livro dos Actos narra uma série de missões realizadas pelos Apóstolos, primeiro na Samaria, depois ao longo da Palestina, e depois, em direcção à Síria. São narradas sobretudo as três grandes viagens missionárias realizadas por Paulo, como já recordei num precedente encontro de quarta-feira. Mas São Paulo, nas suas Cartas fala-nos do Espírito também sob outra perspectiva. Ele não se detém a ilustrar apenas a dimensão dinâmica e operativa da terceira Pessoa da Santíssima Trindade, mas analisa também a presença na vida do cristão, cuja identidade é marcada por ele. Em outras palavras, Paulo reflecte sobre o Espírito expondo a sua influência não só no agir do cristão, mas também no seu ser. De facto, ele diz que o Espírito de Deus habita em nós (cf. Rm 8, 9; 1 Cor 3, 16) e que "Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho" (Gl 4, 6).Portanto, para Paulo o Espírito conota-nos até às nossas profundezas pessoais mais íntimas. Em relação a isto, eis algumas das suas palavras de importante significado: "A lei do Espírito que dá a vida libertou-te, em Cristo Jesus, da lei do pecado e da morte... Vós não recebestes um Espírito que vos escravize e volte a encher-vos de medo; mas recebestes um Espírito que faz de vós filhos adoptivos. É por Ele que clamámos: Abbá, ó Pai!" (Rm 8, 2.15), porque somos filhos, podemos chamar "Pai" a Deus. Portanto, vemos bem que o cristão, ainda antes de agir, já possui uma interioridade rica e fecunda, que lhe é concedida nos sacramentos do Baptismo e da Confirmação, uma interioridade que o estabelece num relacionamento objectivo e original de filiação em relação a Deus. Eis a nossa grande dignidade: a de não ser apenas imagem, mas filhos de Deus. Trata-se de um convite a viver esta nossa filiação, a estarmos cada vez mais conscientes de que somos filhos adoptivos na grande família de Deus. É um convite a transformar este dom objectivo numa realidade subjectiva, determinante para o nosso pensar, para o nosso agir, para o nosso ser. Deus considera-nos seus filhos, tendo-nos elevado a uma tal dignidade, mesmo se não é igual, à do próprio Jesus, o único Filho em sentido pleno. Nele é-nos dada, ou restituída, a condição filial e a liberdade confiante em relação ao Pai. Assim descobrimos que para o cristão o Espírito já não é apenas o "Espírito de Deus", como se diz normalmente no Antigo Testamento e se continua a repetir na linguagem cristã (cf. Gn 41, 38; Êx 31, 3; 1 Cor 2, 11.12; Fl 3, 3; etc.). E também não é apenas um "Espírito Santo" entendido em sentido genérico, segundo o modo de expressar-se do Antigo Testamento (cf. Is 63,10.11; Sl 51, 13), e do próprio Judaísmo nos seu escritos (Qunram, rabinismo). De facto, pertence à especificidade da fé cristã a confissão de uma original partilha deste Espírito por parte do Senhor ressuscitado, o qual se tornou Ele mesmo "Espírito que dá vida" (1 Cor 15, 45). Precisamente por isso São Paulo fala directamente do "Espírito de Cristo" (Rm 8, 9), do "Espírito do Filho" (Gl 4, 6) ou do "Espírito de Jesus Cristo" (Fl 1, 19). É como se quisesse dizer que não só Deus Pai é visível no Filho (cf. Jo 14, 9), mas que também o Espírito de Deus se expressa na vida e nas acções do Senhor crucificado e ressuscitado! Paulo ensina-nos também outra coisa importante: ele diz que não existe verdadeira oração sem a presença do Espírito em nós. De facto, escreve: "O Espírito vem em auxílio da nossa fraqueza, pois não sabemos o que havemos de pedir como é verdade que não sabemos como falar com Deus! ; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis. E aquele que examina os corações conhece as intenções do Espírito, porque é de acordo com Deus que o Espírito intercede pelos santos" (Rm 8, 26-27). É como dizer que o Espírito Santo, isto é, o Espírito do Pai e do Filho, é como a alma da nossa alma, a parte mais secreta do nosso ser, de onde se eleva incessantemente a Deus um dístico de oração, da qual nem sequer podemos esclarecer as palavras. De facto, o Espírito sempre activo em nós, supre às nossas carências e oferece ao Pai a nossa adoração, juntamente com as nossas aspirações mais profundas. Naturalmente isto exige um nível de maior comunhão vital com o Espírito. É um convite a ser cada vez mais sensíveis, mais atentos a esta presença do Espírito em nós, a transformá-la em oração, a ouvir esta presença e a aprender assim a rezar, a falar com o Pai como filhos no Espírito Santo. Há também outro aspecto típico do Espírito que nos foi ensinado por São Paulo: é a sua ligação com o amor. De facto, São Paulo escreve: "A esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado" (Rm 5, 5). Na minha Carta encíclica "Deus caritas est" citei uma frase muito eloquente de Santo Agostinho: "Se vês a caridade, vês a Trindade" (n. 19), e prossegui explicando: "O Espírito é aquela força que harmoniza seus corações [dos crentes] com o coração de Cristo e leva-os a amar os irmãos como Ele os amou" (ibid.). O Espírito insere-nos no próprio ritmo da vida divina, que é vida de amor, fazendo-nos pessoalmente partícipes dos relacionamentos existentes entre o Pai e o Filho. Não é sem significado que Paulo, quando elenca as várias componentes da frutificação do Espírito, coloque em primeiro lugar o amor: "O fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, etc." (cf. Gl 5, 22).E dado que por definição o amor une, isto significa antes de tudo que o Espírito é criador de comunhão no âmbito da comunidade cristã, como dizemos no início da Santa Missa com uma expressão paulina: "... a comunhão do Espírito Santo [ou seja, a que é realizada por ele] esteja com todos vós!" (2 Cor 13, 13). Mas, por outro lado, é também verdade que o Espírito nos estimula a estabelecer relacionamentos de caridade com todos os homens. Dado que, quando amamos damos espaço ao Espírito, permitimos que se expresse em plenitude. Compreende-se assim por que Paulo coloca na mesma página da Carta aos Romanos as duas exortações: "deixai-vos inflamar pelo Espírito" e "não pagueis a ninguém o mal com o mal" (Rm 12, 11.17). Por fim, o Espírito segundo São Paulo é um penhor generoso que nos é dado pelo próprio Deus como antecipação e ao mesmo tempo como garantia da nossa herança futura (cf. 2 Cor 1, 22; 5, 5 Ef 1, 13-14). Aprendemos assim de Paulo que a acção do Espírito orienta a nossa vida para os grandes valores do amor, da alegria, da comunhão e da esperança. Compete a nós fazer deles experiência quotidiana acompanhadas pelas sugestões interiores do Espírito, ajudados no discernimento pela orientação iluminadora do Apóstolo.
(Bento XVI, Audiência Geral, 15.11.2006)
Segue-se:
Paulo, a vida na Igreja
António Fonseca

ANO PAULINO - Artigos (3)

Paulo, a centralidade de Jesus Cristo

Na catequese precedente, há quinze dias, procurei traçar os aspectos essenciais da biografia do apóstolo Paulo. Vimos como o encontro com Cristo pelo caminho de Damasco revolucionou literalmente a sua vida. Cristo tornou-se a sua razão de ser e o motivo profundo de todo o seu trabalho apostólico. Nas suas cartas, depois do nome de Deus, que aparece mais de 500 vezes, o nome que é mencionado com mais frequência é o de Cristo (380 vezes). Por conseguinte, é importante que nos apercebamos de quanto Jesus Cristo possa incidir na vida de um homem e portanto também na nossa própria vida. Na realidade, Jesus Cristo é o ápice da história salvífica e, desta forma, o verdadeiro ponto discriminante também no diálogo com as outras religiões. Olhando para Paulo, poderíamos formular assim a pergunta fundamental: como acontece o encontro de um ser humano com Cristo? E em que consiste a relação que dele deriva? A resposta de Paulo pode ser compreendida em dois momentos. Em primeiro lugar, Paulo ajuda-nos a compreender o valor absolutamente fundante e insubstituível da fé. Eis quanto escreve na Carta aos Romanos: "Pois estamos convencidos de que é pela fé que o homem é justificado, independentemente das obras da lei" (3, 28). E também na Carta aos Gálatas: "O homem não é justificado pelas obras da Lei, mas unicamente pela fé em Jesus Cristo; por isso, também nós acreditámos em Cristo Jesus para sermos justificados pela fé em Cristo e não pelas obras da Lei; porque pelas obras da Lei nenhuma criatura será justificada" (2, 16). "Ser justificados" significa ser tornados justos, isto é, ser acolhidos pela justiça misericordiosa de Deus, e entrar em comunhão com Ele, e por conseguinte poder estabelecer uma relação muito mais autêntica com todos os nossos irmãos: e isto com base num perdão total dos nossos pecados. Pois bem, Paulo diz com muita clareza que esta condição de vida não depende das nossas eventuais boas obras, mas de uma mera graça de Deus: "Sem o merecerem, são justificados pela sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus" (Rm 3, 24). Com estas palavras São Paulo expressa o conteúdo fundamental da sua conversão, o novo rumo da sua vida que resultou do seu encontro com Cristo ressuscitado. Paulo, antes da conversão, não tinha sido um homem afastado de Deus e da sua Lei. Ao contrário, era um observante, com uma observância fiel até ao fanatismo. Mas à luz do encontro com Cristo compreendeu que com isso tinha procurado edificar-se a si mesmo, à sua própria justiça, e que com toda essa justiça tinha vivido para si mesmo. Compreendeu que era absolutamente necessária uma nova orientação da sua vida. E encontramos expressa nas suas palavras esta nova orientação: "E a vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim" (Gl 2, 20).Por conseguinte, Paulo já não vive para si, para a sua própria justiça. Vive de Cristo e com Cristo: entregando-se a si mesmo, não mais procurando e construindo-se a si mesmo. Esta é a nova justiça, a nova orientação que o Senhor nos deu, que a fé nos deu. Diante da cruz de Cristo, expressão extrema da sua auto-doação, não há ninguém que possa vangloriar-se a si, à própria justiça feita por si e para si! Noutra carta Paulo, fazendo eco a Jeremias, expressa este pensamento escrevendo: "Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor" (1 Cor 1, 31 = Jr 9, 22s); ou: "Quanto a mim, porém, de nada me quero gloriar, a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo" (Gl 6, 14). Reflectindo sobre o significado de justificação não pelas obras mas pela fé, chegamos ao segundo aspecto que define a identidade cristã descrita por São Paulo na própria vida. Identidade cristã que se compõe precisamente por dois elementos: este não procurar-se por si, mas receber-se de Cristo e doar-se com Cristo, e desta forma participar pessoalmente na vicissitude do próprio Cristo, até se imergir n'Ele e partilhar quer a sua morte quer a sua vida. É quanto escreve Paulo na Carta aos Romanos: "fomos baptizados na sua morte... fomos sepultados com Ele na morte... estamos integrados n'Ele... Assim vós também: considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus" (Rm 6, 3.4.5.11). Precisamente esta última expressão é sintomática: para Paulo, de facto, não é suficiente dizer que os cristãos são baptizados ou crentes; para ele é de igual modo importante dizer que eles são "em Cristo Jesus" (cf. também Rm 8, 1.2.39; 12, 5; 16, 3.7.10; 1 Cor 1, 2.3, etc.). Outras vezes ele inverte as palavras e escreve que "Cristo está em nós/vós" (Rm 8, 10; 2 Cor 13, 5) ou "em mim" (Gl 2, 20). Esta mútua compenetração entre Cristo e o cristão, característica do ensinamento de Paulo, completa o seu discurso sobre a fé. A fé, de facto, mesmo unindo-nos intimamente a Cristo, realça a distinção entre nós e Ele. Mas, segundo Paulo, a vida do cristão tem também um componente que poderíamos dizer "místico", porque obriga a uma nossa identificação com Cristo e de Cristo connosco. Neste sentido, o Apóstolo chega até a qualificar os nossos sofrimentos como os "sofrimentos de Cristo em nós" (2 Cor 1, 5), de modo que "trazemos sempre no nosso corpo a morte de Jesus, para que também a vida de Jesus seja manifesta no nosso corpo" (2 Cor 4, 10). Devemos inserir tudo isto na nossa vida quotidiana seguindo o exemplo de Paulo que viveu sempre com este grande alcance espiritual. Por um lado, a fé deve manter-nos numa atitude constante de humildade perante Deus, aliás, de adoração e de louvor em relação a ele. De facto, o que nós somos como cristãos devemo-lo unicamente a Ele e à sua graça. Dado que nada nem ninguém pode ocupar o seu lugar, é preciso portanto que não tributemos a nada nem a ninguém a homenagem que a Ele prestamos. Ídolo algum deve contaminar o nosso universo espiritual, porque neste caso, em vez de gozar da liberdade adquirida cairíamos de novo numa espécie de escravidão humilhante. Por outro lado, a nossa pertença radical a Cristo e o facto que "existimos n'Ele" deve infundir-nos uma atitude de total confiança e de imensa alegria. Para concluir, de facto, devemos exclamar com São Paulo: "Se Deus está por nós, quem pode estar contra nós?" (Rm 8, 31). E a resposta é que ninguém "poderá separar-nos do amor de Deus que está em Cristo Jesus, Senhor nosso" (Rm 8, 39). Por conseguinte, a nossa vida cristã baseia-se na rocha mais estável e segura que se possa imaginar. E dela tiramos toda a nossa energia, como escreve precisamente o Apóstolo: "De tudo sou capaz naquele que me dá força" (Fl 4, 13). Enfrentemos portanto a nossa existência, com as suas alegrias e com os seus sofrimentos, amparados por estes grandes sentimentos que Paulo nos oferece. Fazendo deles experiência poderemos compreender como é verdadeiro o que o próprio Apóstolo escreve: "sei em quem acredito e estou persuadido de que Ele tem poder para guardar, até aquele dia, o bem que me foi confiado" (2 Tm 1, 12) do nosso encontro com Cristo Juiz, Salvador do mundo e nosso.
(Bento XVI, Audiência Geral, 25.10.2006)
Segue-se:
Paulo, o Espírito nos nossos corações
António Fonseca

ANO PAULINO - Artigos (2)

Paulo, perfil do homem e do apóstolo

Concluímos as nossas reflexões sobre os doze Apóstolos chamados directamente por Jesus durante a sua vida terrena. Iniciamos hoje a aproximar as figuras de outras personagens importantes da Igreja primitiva. Também elas dedicaram a sua vida ao Senhor, ao Evangelho e à Igreja. Trata-se de homens, e também de mulheres que, como escreve Lucas no Livro dos Actos, "expuseram as suas vidas pelo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo" (15, 26).
O primeiro deles, chamado pelo próprio Senhor, pelo Ressuscitado, para ser também ele um verdadeiro Apóstolo, é sem dúvida Paulo de Tarso. Ele brilha como estrela de primeira grandeza na história da Igreja, e não só da primitiva. São João Crisóstomo exalta-o como personagem superior até a muitos anjos e arcanjos (cf. Panegirico, 7, 3). Dante Alighieri na Divina Comédia, inspirando-se na narração de Lucas feita nos Actos (cf. 9, 15), define-o simplesmente "vaso de eleição" (Inf. 2, 28), que significa: instrumento pré-escolhido por Deus. Outros chamaram-no o "décimo terceiro Apóstolo" e realmente ele insiste muito para ser um verdadeiro Apóstolo, tendo sido chamado pelo Ressuscitado ou até "o primeiro depois do Único". Sem dúvida, depois de Jesus, ele é o personagem das origens sobre a qual estamos mais informados. De facto, possuímos não só a narração que dele faz Lucas nos Actos dos Apóstolos, mas também um grupo de Cartas que provêm directamente da sua mão e sem intermediários nos revelam a sua personalidade e o seu pensamento. Lucas informa-nos que o seu nome originário era Saulo (cf. Act 7, 58; 8, 1, etc.), aliás em hebraico Saul (cf. Act 9, 14.17; 22, 7.13; 26, 14), como o rei Saul (cf. Act 13, 21), e era um judeu da diáspora, estando a cidade de Tarso situada entre a Anatólia e a Síria. Tinha ido muito cedo a Jerusalém para estudar profundamente a Lei mosaica aos pés do grande Rabi Gamaliel (cf. Act 22, 3). Tinha aprendido também uma profissão manual e áspera, era fabricante de tendas (cf. Act 18, 3), que sucessivamente lhe permitiu sustentar-se pessoalmente sem pesar sobre as Igrejas (cf. Act 20, 34; 1 Cor 4, 12; 2 Cor 12, 13-14).
Para ele foi decisivo conhecer a comunidade dos que se professavam discípulos de Jesus. Por eles tinha sabido a notícia de uma nova fé um novo "caminho", como se dizia que colocava no seu centro não tanto a Lei de Deus, quanto a pessoa de Jesus, crucificado e ressuscitado, com o qual estava relacionada a remissão dos pecados. Como judeu zeloso, ele considerava esta mensagem inaceitável, aliás escandalosa, e por isso sentiu o dever de perseguir os seguidores de Cristo também fora de Jerusalém. Foi precisamente no caminho para Damasco, no início dos anos 30, que Saulo, segundo as suas palavras, foi "alcançado por Cristo" (Fl 3, 12).
Enquanto Lucas narra os factos com riqueza de pormenores de como a luz do Ressuscitado o alcançou e mudou fundamentalmente toda a sua vida ele nas suas Cartas vai directamente ao essencial e fala não só da visão (cf. 1 Cor 9, 1), mas de iluminação (cf. 2 Cor 4, 6) e sobretudo de revelação e de vocação no encontro com o Ressuscitado (cf. Gl 1, 15-16). De facto, definir-se-á explicitamente "apóstolo por vocação" (cf. Rm 1, 1; 1 Cor 1, 1) ou "apóstolo por vontade de Deus" (2 Cor 1, 1; Ef 1, 1; Col 1, 1), para realçar que a sua conversão não era o resultado de um desenvolvimento de pensamentos, de reflexões, mas o fruto de uma intervenção divina, de uma imprevisível graça divina. A partir daquele momento, tudo o que antes constituía para ele um valor tornou-se paradoxalmente, segundo as suas palavras, perda e lixo (cf. Fl 3, 7-10). A partir daquele momento todas as suas energias foram postas ao serviço exclusivo de Jesus Cristo e do seu Evangelho.
Agora a sua existência será a de um Apóstolo desejoso de "se fazer tudo em todos" (1 Cor 9, 22) sem reservas.
Isto constitui para nós uma lição muito importante: o mais importante é colocar no centro da própria vida Jesus Cristo, de modo que a nossa identidade se distinga essencialmente pelo encontro, pela comunhão com Cristo e com a sua Palavra. À sua luz todos os outros valores são recuperados e ao mesmo tempo purificados de eventuais impurezas. Outra lição fundamental oferecida por Paulo é o alcance universal que caracteriza o seu apostolado. Vendo a agudeza do problema do acesso dos Gentios, isto é dos pagãos, a Deus, que em Jesus Cristo crucificado e ressuscitado oferece a salvação a todos os homens sem excepções, dedicou-se totalmente a dar a conhecer este Evangelho, literalmente "boa notícia", isto é, anúncio de graça destinado a reconciliar o homem com Deus, consigo mesmo e com os outros. Desde o primeiro momento ele tinha compreendido que esta era uma realidade que não dizia respeito só aos judeus ou a um certo grupo de homens, mas que tinha um valor universal e se referia a todos, porque Deus é o Deus de todos.
O ponto de partida para as suas viagens foi a Igreja de Antioquia da Síria, onde pela primeira vez o Evangelho foi anunciado aos Gregos e onde também foi cunhado o nome de "cristãos" (cf. Act 11, 20.26), isto é, de crentes em Cristo. Dali ele dirigiu-se primeiro para Chipre e depois várias vezes para as regiões da Ásia Menor (Pisídia, Licaónia, Galácia), depois para as da Europa (Macedónia, Grécia). Mais relevantes foram as cidades de Éfeso, Filipos, Tessalônica, Corinto, sem contudo esquecer Beréia, Atenas e Mileto.
No apostolado de Paulo não faltaram dificuldades, que ele enfrentou com coragem por amor de Cristo. Ele mesmo recorda ter agido "pelos trabalhos... pelas prisões... pelos açoites, pelos frequentes perigos de morte... três vezes fui açoitado com varas, uma vez apedrejado; três vezes naufraguei... viagens sem conta, exposto a perigos nos rios, perigos de salteadores, perigos da parte dos meus concidadãos, perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar, perigos entre os falsos irmãos; trabalhos e fadigas, repetidas vigílias com fome e sede, frequentes jejuns, frio e nudez! E além de tudo isto, a minha obsessão de cada dia: cuidado de todas as Igrejas" (2 Cor 11, 23-28). De um trecho da Carta aos Romanos (cf. 15, 24.28) transparece o seu propósito de chegar até à Espanha, às extremidades do Ocidente, para anunciar o Evangelho em toda a parte, até aos confins da terra então conhecida. Como não admirar um homem como este? Como não agradecer ao Senhor por nos ter dado um Apóstolo desta estatura? É claro que não lhe teria sido possível enfrentar situações tão difíceis e por vezes desesperadas, se não tivesse havido uma razão de valor absoluto, perante a qual nenhum limite se podia considerar insuperável. Para Paulo, esta razão, sabemo-lo, é Jesus Cristo, do qual ele escreve: "O amor de Cristo nos impulsiona... para que, os que vivem, não vivam mais para si mesmos, mas para Aquele que por eles morreu e ressuscitou" (2 Cor 5, 14-15), por nós, por todos.
De facto, o Apóstolo dará o testemunho supremo do sangue sob o imperador Nero aqui em Roma, onde conservamos e veneramos os seus despojos mortais. Assim escreveu acerca dele Clemente Romano, meu predecessor nesta Sede Apostólica nos últimos anos do século I: "Por causa dos ciúmes e da discórdia Paulo foi obrigado a mostrar-nos como se obtém o prémio da paciência... Depois de ter pregado a justiça a todo o mundo, e depois de ter chegado até aos extremos confins do Ocidente, sofreu o martírio diante dos governantes; assim partiu deste mundo e chegou ao lugar sagrado, que com isso se tornou o maior modelo de perseverança" (Aos Coríntios, 5). O Senhor nos ajude a pôr em prática a exortação que nos foi deixada pelo Apóstolo nas suas Cartas: "Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo" (1 Cor 11, 1).
(Bento XVI, Audiência Geral, 25.10.2006) Segue-se: Paulo, a centralidade de Jesus Cristo António Fonseca

ANO PAULINO - Artigos

Lista de alguns vídeos publicados por http://ecclesia.pt/anopaulino
VÍDEOS
Ano Paulino
Nos Passos de S. Paulo (1)

Nos Passos de S. Paulo (2)

Nos passos de S. Paulo (3)

Nos passos de S. Paulo (4)

Nos passos de S. Paulo (5)

Nos passos de S. Paulo (6)
Lista de alguns artigos colhidos através do site http://ecclesia.pt que eu tomei a liberdade de publicar em seguida
ARTIGOS

Começarei então por:
Ano Paulino: as dores de cabeça O Ano Paulino: as dores de cabeça
D. Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real, escreve sobre a importância do Ano Paulino para todos os cristãos.
1- Aí está uma realidade que todos conhecemos por experiência pessoal, mesmo em tempo de férias: dores físicas e dores morais, dores de cabeça pelo rodopio das multidões e dores de solidão forçada, dores de operário e dores de empresário, dores de falta de dinheiro e dores de quem não sabe como salvar as economias permanentemente roídas pela inflação, dores pela legítima aquisição das estruturas familiares e dores na sua administração, dores conjugais e dores familiares, dores de fracassos da vida política e dores de sonhos desfeitos. Cada um conhece bem alguns destes sectores e, frequentemente, um pouco de todos. Alguns matizes dos sofrimentos são mais sentidos nas férias: notícias de amigos que faleceram ou que vivem dramas profundos, a escuta de lamentações e desabafos dolorosos, de críticas e advertências.
Mesmo sem vestir a pele de Job ou acrescentar textos novos aos textos de Jeremias, a vida parece, para o comum dos mortais, tecida de muitas dores de cabeça.
2- A esta lista de aflições comuns, gostaria de juntar neste Ano Paulino as dores que nascem da acção pastoral, isto é, as dores oriundas da actividade evangelizadora. Como em Paulo de Tarso, são dores que parecem restritas aos discípulos de Jesus e desconhecidas de quem não tem fé, a quem tudo parece correr bem, sem atritos, sem insónias, sem ondas nem remorsos. Em quase todas as cartas Paulo refere muitas dessas dores e, mesmo as dores físicas, são nele frequentemente efeito do trabalho evangelizador: dores de viagens longas e arriscadas por terra e por mar, naufrágios, dias de fome e de frio, fugas humilhantes como descer uma muralha dentro de um cesto (2 Cor 11,33), incompatibilidade de feitios com Barnabé e João Marcos, diferenças de sensibilidade pastoral e de cultura teológica com outros Apóstolos, dores oriundas das limitações pessoais (defeito físico do rosto? pobreza de apresentação? gaguez análoga a Moisés e Jeremias? a sua condição de judeu a pregar aos gentios e incapaz de convencer os judeus? - 2 Cor 12, 7-9), comunidades adolescentes e inconstantes na Galácia do Norte, comunidades sincretistas em Colossos e dialécticas em Atenas (Act 17,16s), celebrações eucarísticas invadidas pelo populismo de convívios vaidosos em Corinto, comerciantes da religiosidade popular disfarçados de pessoas interessadas pelo progresso económico do povo (Act 19,13-32), falso zelo religioso a encobrir jogadas políticas, instrumentalização de senhoras da sociedade por grupos de pressão política (Act 13,50), desavenças entre mulheres cristãs e caprichos doutorais de outras demasiado faladoras em Éfeso (Cartas a Timóteo), manobras levadas a cabo junto dos tribunais romanos para exercer vinganças.
Tudo isso aconteceu na vida de Paulo, e várias vezes teve de se defender a si mesmo para salvar o seu ministério, o que constituiu mais uma dor de cabeça (2 Cor 11;12). Dir-se-ia ser Paulo um homem conflituoso, um gerador de atritos e desavenças, e mesmo uma vocação difícil.
3- Vale a pena suspender aqui a informação bíblica sobre as tribulações pastorais de Paulo e dar lugar a uma revisão de vida pessoal.
Não há ninguém verdadeiramente cristão que não se sinta retratado em muitas destas cenas, sejam párocos, sejam missionários, sejam bispos, sejam religiosos, sejam pais, catequistas, educadores e professores, sejam leigos militantes na Igreja e no mundo. Perante os problemas, poder invadir-nos a terrível pergunta: serei uma vocação falhada? Será que ando enganado? Será este o meu lugar? Não será melhor deixar andar? Ainda vale a pena a ousadia?
Consciente ou inconscientemente, todos sonhamos com uma vida pastoral e cristã sem atritos, pelo menos no interior da Igreja. E, teoricamente, há conflitos que se podiam evitar, não sendo necessário soprar o vento da agitação para fazer andar o mundo, pois a história não se faz com luta de classes, mas no diálogo sincero, na paciência e conjugação de esforços. Todavia, a marca humana (susceptibilidades e limitações humanas, tanto de pessoas como de grupos, a diversidade de perspectivas), invade o trabalho mais leal.
Analise o leitor o que se passa à sua volta:
De que conflitos é acusado? – De propor aos filhos e àqueles de quem se é responsável o Evangelho como «boa nova», e exigir esforço e brio? De clamar por professores e catequistas que eduquem a cabeça e o coração dos filhos e alunos? De apelar à seriedade na vida académica e profissional, de repetir que estudar faz doer e trabalhar faz suar? De lembrar aos detentores do poder os descaminhos, convidando-os a pôr os pés no chão?
Apesar de todos os conselhos que damos e recebemos, apesar de todas as cautelas que sugerimos e tomamos, apesar da experiência dos anos, surgirão sempre, pela fragilidade de uns, imaturidade de outros e obstáculos de terceiros, dores de cabeça e desgaste, tanto na acção como na omissão. Não se é também acusado de não ter falado nem agido? Até o silêncio faz sofrer, pois evitar sistematicamente pequenas dores de cabeça é contribuir para a criação de furacões sociais, e invocar a paz esconde às vezes o medo de agir e o desejo de «cultivar a imagem». Há atitudes falsamente pacíficas, filhas de um errado irenismo, e saber discernir as atitudes de falar e de calar é outro desafio.
Realmente, é um mistério humano este de termos de sofrer para aprender e fazer sofrer aqueles que estimamos. Geralmente, as coisas só se tornam indiscutíveis e claras depois de feitas, seja o bem, seja o mal, mas já não há volta a dar. Antes, seria preciso acreditar e obedecer a um plano e ainda que todos os intervenientes na obra a executassem fielmente, mas isso ultrapassa a vida humana.
Estamos, pois, condenados a sofrer e a fazer sofrer. Há situações conflituosas inevitáveis e inculpáveis. Resta-nos torná-los salutares, que façam crescer as pessoas. O próprio Jesus advertiu-nos da necessidade constante de pedir perdão, de praticar a correcção fraterna, e, ao mesmo tempo, da nossa condição de soldados da «guerra» que Ele próprio veio «estabelecer». «O reino de Deus sofre violência e são os violentos que o arrebatam». Há uma paz que não vem de Deus, a paz podre, a paz da inércia, a paz da ausência de princípios e da falsa descontracção, a paz dos que ficam parados para não terem a maçada de investir o talento recebido ou dos que não sabem o que querem.
Difundiu-se em vastos sectores da sociedade, nas famílias (incluindo a dinâmica do amor conjugal e da geração de filhos), o sonho de um amor sem dores, sem necessidade de humildade, de pedir perdão e de recomeçar. Sem perder a paz, há que assumir o sonho e o fracasso, pois o caminho evangélico aprende-se sofrendo.
Os textos paulinos falam da «parèsia» do Apóstolo, uma atitude que é um misto de audácia e confiança em Deus. É essa «parèsia» que o anima a pregar nos mais variados tons, incluindo os sentimentos de pai e de mãe, a traçar normas e a aplicar castigos, e a aprender com o insucesso: em Corinto pregou a Cruz, depois de haver falhado com o brilharete filosófico em Atenas. Não há em Paulo quaisquer sinais de angústia existencial acerca da sua vocação: «sei em quem acreditei», sei que «trago comigo os estigmas da paixão de Cristo». E deixa que seja Deus a fazer o julgamento e a marcar a data da colheita; a si basta semear, por vezes com lágrimas.
Quem sabe se este Ano Paulino não fará parte dos frutos da sementeira de há dois milénios!
D. Joaquim Gonçalves - Bispo de Vila Real
Segue-se:
Paulo, perfil do homem e do Apóstolo
António Fonseca

Igreja da Comunidade de São Paulo do Viso

Nº 5 801 - SÉRIE DE 2024 - Nº (277) - SANTOS DE CADA DIA - 2 DE OUTUBRO DE 2024

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