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“DEUS, POR MEIO DE JESUS, CONDUZIRÁ, COM ELE, OS QUE ADORMECERAM”
A morte é um mistério. Por um lado, ela faz parte da vida. Ou melhor: vista realisticamente, é a negação da vida. Daí que, por outro lado, a vida consista na luta contra morte e tudo o que a ela pode levar. Não é isso que nos traz de pé? Mas que sentido tem empenhar a vida por uma causa que, previamente, se sabe perdida?
Por ser um enigma que o ultrapassa, desde a sua origem o homem procura uma solução fora de si. A morte é a questão, por excelência, de todas as religiões. E até muitos dos que se têm por ateus ou agnósticos e rejeitam a imortalidade, até esses manifestam um respeito para com os mortos que, por vezes, tem expressões quase cultuais e nos faz duvidar das suas convicções.
O Cristianismo é a única religião fundada no efectivo triunfo de Deus sobre a morte. Mas é um triunfo na morte e pela morte. Por isso, também ele é um mistério. Ainda hoje se procuram explicações racionais para a ressurreição de Cristo que, não raramente, levam à sua negação. É que, a razão última, se de razão se pode falar, que nos leva a aceitar a vitória definitiva de Cristo sobre a morte é a fé. E a verdade que esta se baseia em testemunhos, localizáveis no tempo e no espaço. Mas são testemunhos de fé. Daí que nem todos se deixem convencer.
De entre eles, destaca-se o de Paulo, quer pelos efeitos radicais do encontro com Cristo ressuscitado na sua vida, quer, na sequência disso Ele ser, a todos os níveis, o conteúdo central e centralizador da sua pregação. Não há tema nenhum das suas cartas sem uma referência directa ou indirecta a Cristo glorioso.
É o caso de 1 Ts 4, 13-18, onde fala do destino dos cristãos depois da morte. Não se sabe ao certo a origem da dúvida: talvez, por Paulo, na fundação da comunidade uns meses antes, ter manifestado a convicção de que a última vinda de Cristo estaria para breve. Nesse caso, que acontece com os cristãos entretanto falecidos? Independentemente destas circunstâncias, a pergunta é de todos os tempos. Porque, na prática, é a morte que está em questão. Ou melhor: a vida que todos tanto amamos.
1 TS 4, 13-18
Mas não queremos, irmãos, deixar-vos na ignorância a respeito dos que adormeceram, para não andardes tristes como os outros que não têm esperança. De facto, se acreditamos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também Deus, por meio de Jesus, conduzirá, com Ele, os que adormeceram.
Isto, com efeito, vos dizemos com uma palavra do Senhor: nós, os vivos, os que ficarmos até à vinda do Senhor, não precederemos os que adormeceram; pois o próprio Senhor, à ordem dada, à voz do arcanjo e à trombeta de Deus, descerá do Céu, e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro. Em seguida, nós, os vivos, os que ficamos, seremos arrebatados juntamente com eles sobre as nuvens, para irmos ao encontro do Senhor nos ares, e assim estaremos sempre com o Senhor.
Consola-vos, pois, uns aos outros com estas palavras.
Confirma-se que Paulo não fala da morte, mas dos mortos, e só de cristãos. Usa um eufemismo ainda hoje ouvido: por ser tão cruel, preferimos falar de adormecer, até porque o sono é o estado mais parecido com a morte. Mas será só por isso? Ou será também, porque por detrás disso se esconde o desejo de que tudo não passe de um sono e de que, assim, a maior causa de tristeza resulte na de maior alegria?
Paulo distingue-nos dos que não têm esperança (v. 1). Pressupõe-se que não é uma como a nossa. É que também noutros, sobretudo os judeus, acreditavam que a vida não termina com a morte. Desde o século II aC., era quase comum entre eles a convicção de que Deus, nos tempos finais da história, ressuscitaria os mortos que se lhe tinham mantido fiéis até ao fim, mormente os que tinham pago a fé com a vida: os mártires, por rejeitarem normas éticas e cultuais a que eram forçados com a helenização da Palestina, imposta por Antíoco IV (cfr 2 Mac e Dn). Na base desta convicção está a relação entre Deus e a vida. Se Ele, como havia mostrado na história do seu povo, é mesmo o Autor e Senhor da vida, como poderá agora abandonar à morte quem para Ele sempre vivera?
O que para eles era uma esperança, fundada no ser e na acção de Deus e numa prática de vida coerente com a fé, tornou-se realidade histórica em Jesus Cristo. No fundo, pelas mesmas razões: porque Ele, o maior justo, se manteve em comunhão com Deus. Mais: porque enfrentou a ignomínia da Cruz como a prova máxima da sua fidelidade a Deus e aos homens, fazendo da morte a doação da vida, num amor incondicional, por isso a sua morte foi o definitivo triunfo sobre a morte e tudo o que a ela conduz.
É este acontecimento salvífico que está resumido na afirmação de que Jesus morreu e ressuscitou (v. 14a), o conteúdo do Evangelho anunciado por Paulo e acolhido pelos cristãos de Tessalónica. A frase é precedida por acreditamos, um verbo que, conforme o correspondente hebraico, indica uma entrega total a Deus, uma entrega a quem todo se entregou, e que, por isso, se torna presente e actuante naqueles que a Ele se entregam, fazendo deles novas criaturas (2 Cor 5, 14-17). De tal modo que, diz-nos Paulo, se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus de entre os mortos habita em vós, também dará vida aos vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito que habita em vós (Rm 8, 11).
É o mesmo que dizer: assim também Deus, por meio de Jesus, conduzirá, com Ele, os que adormeceram (v. 14b). A diferença está, praticamente, só no verbo conduzir, aplicado na Bíblia a intervenções de Deus, como o êxodo do Egipto, também ele uma condução da morte à vida.
É possível que Paulo o tenha escolhido, por ter já em vista a descrição seguinte da ressurreição dos que vivem e morrem em união com Jesus ressuscitado, servindo-se de uma palavra do Senhor que cita (v. 15) e explica (vv. 16). É uma das palavras de Jesus que os evangelhos não recolheram da tradição oral. O mais importante é a sua autoridade. A linguagem é metafórica, a única possível para exprimir realidades transcendentais, como são as teofanias. Neste caso, são termos indicativos da luta vitoriosa na guerra contra o maior inimigo do homem, uma vitória celebrada no culto: a trombeta convoca para a batalha e a celebração cultual; o arrebatamento exprime a libertação dos prisioneiros da morte; as nuvens aparecem nas teofanias, para, simultaneamente, Revelar e encobrir um Deus que está para além dois ares, que separam o terreno do transcendente.
Esta é, pois, a nossa esperança: os defuntos cristãos, uma vez ressuscitados, participarão, tal como os vivos, até à vinda gloriosa de Cristo, da eterna comunhão de amor com Ele. Um amor de que já vive e se exprime também na consolação dos que sofrem por causa da morte... para consolo, presente e futuro, dosa que o fazem (v. 18).
In: “Um Ano a caminhar com São Paulo”
De: D. Anacleto de Oliveira – Bispo Auxiliar de Lisboa
Compilado por: António Fonseca - 06-04-2009