EPÍLOGO
PAULO FALA-NOS (DEPOIS) DO SEU MARTÍRIO
“PARA MIM, VIVER É CRISTO E MORRER UM LUCRO”
Não se e exactamente em que data nem de que modo Paulo foi morto. Os Actos dos Apóstolos, depois do relato da sua prisão em Jerusalém e da viagem para Roma, para aí ser julgado, dizem somente que aí permaneceu dois anos inteiros sob arresto domiciliário (28, 30). Com base em tradições posteriores, pensa-se que terá sido degolado na primeira metade dos anos sessenta.
Mas, mais do que as circunstâncias externas da sua morte, é o seu significado que nos deve interessar. Tanto mais que foi escrito directamente pelo próprio em Fl 1, 12-26, numa carta enviada da prisão, provavelmente em Éfeso, sem saber ainda o desfecho que o esperava. As suas palavras mostram-nos que para ele a morte física não iria ser o termo, mas o auge de uma vida que se prolonga muito para além dos nossos dias e da qual continuamos hoje a usufruir. Vejamos em que sentido.
Fl 1, 12-26
Mas quero dar-vos a conhecer, irmãos, que o que se passa comigo acabou por contribuir ainda mais para o progresso do Evangelho: assim, foi em Cristo que as minhas prisões se tornaram conhecidas em todo o pretório e de todos os restantes; e a maioria dos irmãos do Senhor é pela confiança ganha devido às minhas prisões que têm mais coragem para, sem medo, anunciar a Palavra.
Embora alguns o façam por inveja e rivalidade, outros, porém, é mesmo com boa intenção que pregam a Cristo. Embora haja os que o fazem por caridade, sabendo que estou designado para a defesa do Evangelho, os que, porém, anunciam Cristo por ambição, sem sinceridade, pensam que estão a agravar a tributação que sofro nas minhas prisões. Mas que importa? Desde que, de qualquer modo, por subterfúgio ou por veracidade, Cristo seja anunciado, com isso me alegro.
Mais: alegrar-me-ei, pois sei que isto irá resultar para mim em salvação, devido às vossas orações e ao auxílio do Espírito de Jesus Cristo, de acordo com a minha expectativa e esperança de que em nada serei envergonhado. Pelo contrário, com todo o desassombro, como sempre também agora, Cristo será engrandecido no meu corpo, quer pela vida quer peia morte.
É que, para mim, viver é Cristo e morrer, um lucro. Se, porém, eu viver na carne, isso para mim reverterá em fruto da obra que realizo; o que hei-de escolher, não sei. Estou pressionado dos dois lados: tenho o desejo de partir e estar com Cristo, já que isso seria muito e muito melhor; mas permanecer na carne é mais necessário por causa de vós. E é confiado nisto que sei que ficarei e continuarei junto de todos vós para o vosso progresso e alegria da fé, a fim de que a vossa glória, que tendes em Cristo Jesus por meio de mim, aumente com a minha presença de novo junto de vós.
No centro das palavras de Paulo está o mesmo que sempre esteve no centro da sua vida apostólica: a alegria (v. 18). Alegra-se pelo que está a acontecer por causa sua prisão (vv. 12-18) e pelo que poderá suceder-lhe como resultado da mesma (vv. 19-26). Um preso que, quanto mais preso, mais livre se sente. Seria um contra-senso, se o que realmente o prende não fosse exactamente quem o faz plenamente livre: Cristo que, só com este título, é mencionado nove vezes. É por causa dele que está encarcerado (v. 13), de tal modo que na carta a Filémon, escrita do mesmo lugar, se apresenta como prisioneiro de Cristo Jesus (vv. 1.9). Mas continua seu prisioneiro, mesmo para além das amarras do cárcere e até da morte, que, por isso, enfrenta ainda com maior alegria.
Na base da sua alegria está a certeza da fé: Sei que isto irá resultar para mim em salvação (v. 19). O que sabe vem-lhe de Deus a quem se entrega. E fá-lo de três modos:
1. Recorre à sua Palavra: Isto irá resultar para mim em salvação é dito por Job (13, 16), como expressão de total confiança em Deus que, nem na morte, abandona os seus.
2. 2. Conta com as orações da comunidade à qual ele próprio se havia associado, também pela oração e por uma causa comum: o anúncio do Evangelho (1, 4s). Por isso:
3. Confia no auxílio do Espírito de Jesus Cristo, certamente pedido nas orações da comunidade e prometido por Jesus aos mensageiros do Evangelho (Mc 13, 11).
A esta fé corresponde, como ele diz, a expectativa e esperança de que em nada serei envergonhado (v. 20). De novo se apoia em palavras sagradas (Sl 24, 2s.20; 68, 7; 118, 31.80.116): como o salmista, também ele não será envergonhado na missão de testemunhar Cristo. Pelo contrário: se a tribulação produz a paciência, a paciência a comprovação, e a comprovação a esperança, e esta não engana (Rm 5, 4s), então é nas tribulações, como aquela por que está a passar, que – acrescenta ele – com todo o desassombro (...) Cristo será engrandecido no meu corpo, quer pela vida quer pela morte. É nas tribulações que mais se sente o poder vivificante do triunfo de Cristo sobre a morte. E o primeiro dele a usufruir é o Apóstolo.
Daí que ele diga: Para mim, viver é Cristo e morrer um lucro (v. 21). O seu critério de vida, aquilo que o faz viver, não é qualquer bem confinado a este mundo limitado e perecível, mas unicamente Cristo que para sempre venceu a morte e, nessas condições, o conquistou, o prendeu parta uma vida como a sua. Se para o Apóstolo viver é Cristo é porque Cristo é a sua vida, no sentido de que já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim (Gl 2, 20).
E é na medida em que Cristo vive em mim e eu para Cristo, que morrer é um lucro. Não porque esteja cansado de viver, mas exactamente o contrário: porque a minha vida consiste em desfazer-me dela em favor dos outros, como fez o Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim (Gl 2, 20). A morte é só um lucro, porque nela me uno plenamente àquele que me faz viver, para gozar perpetuamente do amor com que Ele próprio venceu a morte.
Compreende-se assim o dilema de Paulo: por um lado, deseja morrer, para estar com Cristo para sempre: por outro, vê como é necessário permanecer na carne para, pela presença física, continuar a contribuir para o progresso e alegria da fé das suas comunidades (vv. 22-26). Opta pela segunda hipótese, na esperança de deixar a cadeia em liberdade, mas levado pelo mesmo amor que anseia por saborear na união definitiva com Cristo. Dito por palavras suas: Nenhum de nós vive para si mesmo e nenhum de nós morre para si mesmo. Se vivemos, é para o Senhor que vivemos, e se morremos, é para o Senhor que morremos. Ou seja, quer vivamos quer morramos, é ao Senhor que pertencemos. Pois foi para isto que Cristo morreu e voltou à vida: para ser Senhor dos vivos e dos mortos (Rm 14, 7-9).
Daí que nada mais lhe interesse, senão que Cristo seja anunciado (v. 18). Foi o que fez até à morte. Ou melhor, até ao triunfo sobre a morte. Uma prova de que está vivo, é o testemunho (martírio, em grego) que tantos de nós, levados por ele, damos de Cristo.
In: “Um Ano a caminhar com São Paulo”
De: D. Anacleto de Oliveira – Bispo Auxiliar de Lisboa