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“COMO SERÃO RESSUSCITADOS OS MORTOS”
A maior causa da dificuldade, mesmo de cristãos, em acreditar na ressurreição dos mortos é a verificação do que se passa com o corpo: a sua decomposição até ao desaparecimento. E, depois, +para quê a sua reunificação com a alma, se com esta já se pode gozar de uma felicidade perene e perfeita junto de Deus?
Terá sido esta distinção dualista entre corpo e alma que contribuiu para que já alguns cristãos de Corinto afirmassem que não há ressurreição dos mortos (1 Cor 15, 12). Tanto mais que, para a antropologia popular grega, era um degredo viver no corpo. Além disso, tais cristãos sentiam-se, pela transformação baptismal, tão possuídos pelo Espirito que, ainda na existência corporal, ser consideravam já como que ressuscitados.
Mas será que eles não mediam o alcance destas suas ideias sobretudo relativamente ao conteúdo do Evangelho? De qualquer modo, é a partir dele (15, 1-11) que Paulo conclui: Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. Mas, se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e vã a nossa fé (15, 13s). É, pois, na verdade incontestável da ressurreição de Cristo que se funda a ressurreição dos mortos, em, si (15, 12-34) e na sua componente corporal, como Paulo nos mostra em:
1 Cor 15, – 35,49
Mas alguém dirá: Como serão ressuscitados os mortos? Mas com que corpo vêm eles? Insensato! O que tu semeias não será feito vivo, se não morre. E o que semeias não é o corpo que há-de vir, mas um grão nu, por exemplo, de trigo ou de qualquer outra espécie. Mas é Deus quem lhe dá o corpo como Ele quis, e a cada uma das sementes o seu próprio corpo.
Nem toda a carne é a mesma carne, mas enquanto uma é dos homens, outra é carne de animais, outra é carne de aves, outra de peixes. E há corpos celestes e corpos terrestres; mas um é o brilho dos celestes, outro dos terrestres. Um é o brilho do Sol e outro o brilho da Lua e outro o brilho das estrelas; até uma estrela difere da outra estrela em brilho.
Assim acontece também com a ressurreição dos mortos: semeado em corruptibilidade, é ressuscitado em incorruptibilidade; semeado em desonra, é ressuscitado em glória; semeado em fraqueza é ressuscitado em força; semeado corpo natural, é ressuscitado corpo espiritual. Se há um corpo natural, há também um espiritual.
É assim que também está escrito: o primeiro «homem», Adão «tornou-se uma alma vivente» e o último Adão um espirito vivificante. Mas o primeiro não é o espiritual, mas o natural; depois é que vem o espiritual. O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre; o segundo homem é do Céu. Tal como o terrestre, assim são também os terrestres; e tal como o celeste, assim são também os celestes. E assim como trouxemos a imagem do terrestre, assim traremos também a imagem do celeste.
Insensato não é tanto quem pergunta (v. 35), como sobretudo quem, pelo menos, não tenta perceber a resposta de Paulo (vv. 36-49). É constituída por quatro argumentos, dos quais os dois primeiros são tirados, por analogia, da vida vegetal e animal.
1. Somos como um grão nu (vv. 36-38). De facto, a planta que nasce parece nada ter a ver com a semente que lhe deu origem, tão grande é a diferença entre elas: entre a nudez morte da semente e a vitalidade do corpo da planta. Mesmo para conhecedores da biogénese, é um milagre da natureza, ou melhor, de Deus seu criador.
A semente evoca a nudez do nosso corpo frágil, caduco, mortal. Mas, porque não há-de Deus fazer dele como faz no seu reino da flora? A analogia já era conhecida da literatura rabínica, porém com duas diferenças: a nudez da semente era relacionada apenas com o cadáver que se desfaz, e na passagem da morte à ressurreição apenas se falava de continuidade. Segundo Paulo, o corpo ressuscitado é obra do Deus que dá vida aos mortos e chama à existência o que não existe (Rm 4, 17); e o ser que cria nada tem da nudez do grão que somos, da qual a morte é apenas a conclusão.
2. Seremos como corpos celestes (vv. 39-41). A diferença entre o que somos e o que seremos é completada pela dupla diferença entre os seres vivos: entre os carnais da terra e destes com os luminosos do globo celeste, que no brilho também diferem entre si.
Se o Deus Todo-Poderoso assim criou uns e outros (Gn 1, 14-18.26), como não poderá Ele dar aos nossos corpos carnais um brilho incalculavelmente superior? Mas não se esqueça que, sem corpo não há brilho que se mostre e se apreenda, mesmo depois da morte. A corporeidade é indispensável em qualquer estado de existência humana.
3. Teremos um corpo espiritual (vv. 42-44), mas não no sentido de invisível. Já a respeito do corpo terreno, em vez de natural, à letra deveria traduzir-se por psíquico, porque constituído pela psykhê. E esta não é, na concepção antropológica semítica, a alma separável do corpo, mas o ser humano enquanto dotado de vida. Uma vida, contudo, que provém do Espírito ou sopro vital dado por Deus, Autor e Senhor da vida (Gn 2, 7). Neste caso, e em oposição a natural, o corpo é espiritual, porque animado pelo Espírito de Deus num grau imensuravelmente superior.
É aquele grau adquirido pela passagem, na ressurreição dos mortos, do estado de corruptibilidade, desonra e fraqueza do corpo natural para o da incorruptibilidade, glória e força, próprias do corpo espiritual. É a espiritualidade ou vitalidade que só Deus pode dar. Mas de que modo?
4. Segundo a Escritura, havemos de trazer a imagem do último Adão que se tornou um Espírito vivificante (vv. 45-49). Paulo começa por corrigir (vv. 45-47) a interpretação da criação do homem, proveniente de Filão de Alexandria, que distinguia o homem celeste e espiritual, criado como imagem de Deus (Gn 1, 26s), do homem terreno, criado do pó das terra(2, 7). É a este, porém, que Paulo chama o primeiro Adão e identifica Cristo como o último ou segundo. Enquanto o primeiro é apenas natural e terrestre. Cristo é espiritual, é do céu, e tornou-se, pela sua ressurreição, um Espírito vivificante.
De facto, aqueles que, pela fé e o Baptismo, se unem a Ele, recebem dele o mesmo Espírito com que Deus o ressuscitou dos mortos (Rm 8, 11), como primícias ou penhor da salvação eterna (2 Cor 1, 22; 5, 5; Rm 8, 23). E na medida em que dele vivemos e por Ele nos guiamos, começamos já a deixar de trazer em nós a imagem do Adão terrestre, frágil e pecador, e estamos a caminho do dia da sua última vinda, em que, definitivamente, traremos a imagem do celeste (v. 49).
A imagem supõe-se que seja visível, palpável, corporal. Somos imagem de Cristo, como Ele é de Deus (2 Cor 4, 4; Cl 1, 15) na medida em que são visíveis nos nossos corpos as marcas daquele amor com que Ele, no seu corpo glorioso, se tornou Espírito vivificante... depois de, qual grão de trigo, ter sido lançado à terra e ter morrido (Jo 12, 24).
In: “Um Ano a caminhar com São Paulo”
De: D. Anacleto de Oliveira – Bispo Auxiliar de Lisboa
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