34
“A CARIDADE JAMAIS ACABA”
Uma das palavras com mais peso no NT é, em grego, agápê e seus derivados. Mas também é das mais difíceis de traduzir. As habituais traduções amor ou caridade estão há muito viciadas. Amar é confundido com gostar. E, neste caso, relaciona-me com o outro, na medida em que ele satisfaz os meus gostos. Para isso, o termo grego mais adequado seria eros, desconhecido do NT. Caridade, por sua vez, está quase reduzida ao bem prestado aos outros,. E também ele, tantas vezes, feito ao sabor de quem o pratica. Ainda assim, talvez seja a tradução preferível. Sobretudo, tendo em conta eu na raiz de Caridade está provavelmente o grego kharis que significa graça.
Que a gratuitidade é parte integrante de agápê, pode ver-se no elogio que Paulo lhe tece em 1 Cor 13. Situado entre os cap. 12-14, onde, contra uma preferência exclusivista pela glossololalia, defende a necessidade de todos os carismas, mais usados ao serviço da comunidade. Para isso, há que trilhar um caminho que ultrapassa todos os outros (12, 31): o da caridade.
1 Cor 13
Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, sou com um bronze que soa ou um címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência e ainda eu que tenha toda a fé, de tal modo que remova montanhas, se não tiver caridade, nada sou. Ainda que eu distribua todos os meus bens e ainda que eu entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, de nada me aproveita.
A caridade é paciente, bondosa é a caridade, não ferve de inveja, não se ostenta, não se orgulha, nada faz de inconveniente, não procura o seu interesse, não se irrita, não guarda ressentimento, não se alegra com a injustiça, mas alegra-se com a verdade, tudo suporta, tudo crê, tudo espera, tudo aguenta.
A caridade jamais acaba. As profecias serão abolidas, as línguas cessarão e a ciência será abolida. Pois o nosso conhecimento é fragmentário e fragmentária é também a nossa profecia. Mas, quando vier o que é perfeito, o que é imperfeito será abolido. Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Mas, quando me tornei homem,, deixei o que era próprio de criança. Agora vemos como um espelho, de maneira enigmática; depois veremos face a face; agora conheço de modo fragmentário depois reconhecerei como fui reconhecido. Agora permanecem a fé, a esperança, a caridade, estas três; mas a maior delas é a caridade.
Percorramos então o caminho da Caridade, até chegarmos à plenitude da vida,
na terceira etapa:
1. Sem a Caridade, nada sou (vv. 1-3). , Posso realizar as coisas mais admiráveis. Falar as línguas dos anjos e dos homens. A glossolalia, atribuída a seres celestes, manifesta-se em estados de êxtase que deles se aproximam. Mas que proveito tem, se ninguém entende o que se diz (14, 1-25)? Posso, porém, ter outros dons mais valiosos: a profecia (12, 28: 14, 1-25) e o conhecimento de mistérios e toda a ciência (12, 8) que me dão acesso a Deus e aos seus planos; ou, então, o de uma fé que consegue o que é humanamente impossível (Mt 17, 20). Mais ainda: posso distribuir todos os meus bens e até entregar o meu corpo para ser queimado, sacrificando a minha vida pelos outros e por Deus, através do martírio ...
Se, porém, não tiver Caridade, de nada me aproveita. Mas como, se são acções tão admiráveis ? Exactamente por isso: porque no fundo, é a admiração que eu procuro. Veja-se como tudo está formulado na primeira pessoa do singular. Enquanto me não me libertar do egocentrismo, não é o bem dos outros que realmente me interessa. Na prática, eles são usados para meu proveito. E a minha vida continua encerrada no reduto da minha individualidade. Que devo fazer então? – O que só pela Caridade é possível:
2. A Caridade é paciente, bondosa é a Caridade... (vv. 4-7). O sujeito de todas as 15 frases é agora a Caridade, como se duma pessoa se tratasse. E não será? Vejamos o que ela faz. No original grego , todos os verbos são activos, porque a Caridade existe, na medida em que se pratica. Que vale dizer a uma pessoa que a amo e lhe quero bem, se não lhe faço o bem que lhe quero e evito todo o mal que a prejudique?
A lista começa e termina pelo que de bem se faz. Quem age, levado pela paciência e a bondade (v. 4), é quem tudo suporta, tudo crê, tudo espera, tudo aguenta (v. 7). Um tudo que, pelo meio, exige que se evite todos os males, desde a inveja ao alegrar-se com injustiça, a que se opõe a alegria com a verdade do que faz e diz a pessoa que amo, (vv. 4-6). Ela é tudo para mim. Tanto, que por ela até faço mais do que posso, transcendo as minhas capacidade humanas.
Como assim?
Antes de mais, porque a vida que tenho, se partilhada e aceite pelos outros, alarga-se à vida deles, que passam, por sua vez, a viver também para mim e para outros, numa torrente de vida que não tem fim. A Caridade gera sempre mais Caridade ... e mais vida.
Mas, para isto, e dadas as nossas limitações, precisamos de um outro que, Ele sim, é por natureza capaz de tudo transcender, na sua Caridade. Muitas das virtudes referidas são, na Bíblia, atributos de Deus. Logo as primeiras: O Senhor é misericordioso e compassivo, paciente e cheio de bondade (Sl 102, 8). E porque a todos tanto ama, deu-lhes o próprio Filho (Rm 5, 8; 8, 32, Jo 3, 16) que se humilhou a si mesmo (Fl 2, 6-8) e por todos deu a vida (Gl 2, 20; 2 Cor 5, 14). Só em Deus a Caridade atinge a sua verdadeira dimensão.
3. A Caridade jamais acaba (vv. 8-12). Se acabar, deixa de o ser. A eternidade está inscrita na sua natureza. Quando sou amado, desejo sê-lo para sempre ... e de nada mais preciso. Tudo o resto é fragmentário: as profecias, as línguas, a ciência. Esta condição fragmentária já aponta para algo que seja perfeito, de tal modo que,
quando vier o que é perfeito, o que é imperfeito será abolido.
É como entre a vida de criança e a de adulto: quando era criança, desejo ser adulto; e, uma vez adulto, para o ser, deixo de fazer o que é próprio da criança.
Aplicando isto à relação com Deus e à Caridade que dele já experimentamos: agora vemos (a Deus) como num espelho, de maneira enigmática; depois veremos face a face (Nm 12, 6-8); agora conheço (a Deus) de modo fragmentário; depois o reconhecerei como fui reconhecido por Ele, quando pelo Baptismo, me adoptou como filho. A Caridade de que já vivo desde então, será completa quando dela gozar para sempre.
Para isso, tenho de acolher como um, apelo as últimas palavras de Paulo (v. 13). Porque a fé e a esperança terminam com a visão beatifica na eternidade, por isso a Caridade é a maior. Mas nesta vida preciso das três. Porque sem fé e esperança estou privado do Deus, sem o qual não terei Caridade ... nem a indescritível felicidade que ela me proporciona, já nesta vida.
Boa noite, Irmãos em Cristo.
António Fonseca
Sem comentários:
Enviar um comentário
Gostei.
Muito interessante.
Medianamente interessante.
Pouco interessante.
Nada interessante.