BEATA MARIA DO DIVINO CORAÇÃO
Religiosa
María do Divino Coração de Jesus (Droste zu Vischering), Beata
Religiosa
No dia 1 de Novembro de 1975, o papa Paulo VI inscreveu mais um nome no Catálogo dos bem-aventurados: o de Maria Droste Zu Vischering, que em religião se chamou Irmã Maria do Divino Coração. As canonizações e beatificações dos homens e mulheres que viveram heroicamente a sua fé e irradiaram no seio da Igreja o amor de Deus na extraordinária vivência dos carismas do Espírito, próprios de cada um deles, têm-se multiplicado nos últimos tempos, a ponto de algumas delas nos passarem talvez despercebidas. Esta multiplicidade é na Igreja vivo testemunho da infalível assistência de Cristo, que nestes dias tão conturbados pelo ódio e as paixões humanas, desperta nelas almas tão ardentes e puras na prática heróica de todas as virtudes cristãs. Mas a beatificação da Irmã Maria do Divino Coração, lídima glória da tão benemérita Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor, alemã por nascimento e portuguesa pelo coração, tem para Portugal especial significado. A Portugal dedicou ela, por chamamento divino, o melhor da sua curta vida. Viveu palpitantemente as alegrias e angústias da Igreja na nossa terra, num período bem agitado da sua história, nos últimos anos do século passado (ou melhor dizendo, do século XIX… e princípios do século XX, pois já estamos no século XXI…). Toda a sua espiritualidade, máscula e terna, altamente mística e profundamente humana ao mesmo tempo, hauriu-a ela no Coração de Jesus.
A Devoção ao Coração de Jesus
Coração designa o que há de mais íntimo e profundo no ser humano, a essência do mesmo ser. Quando o Senhor se nos mostra ostentando no peito o Coração abrasado em chamas, quer fazer-nos sentir ao vivo a palavra de S. João «Deus é Amor» (1 Jo 4, 16), e Jesus é a encarnação sensível desse amor; quer fazer-nos entrar pelos sentidos que toda a vitalidade, todo o dinamismo do seu ser humano radica no seu Coração todo amor; tudo n’Ele foi inspirado pelo amor infinito para com o Pai e para com os homens, seus irmãos. Quer mostrar-nos também que as nossas relações e toda a nossa actividade humana só podem ter valor aos seus olhos se irromperem dum Coração que ame. A Beata Maria Droste bebeu esta devoção com o leite materno. Já seus pais, profundamente cristãos, a viviam intensamente, e souberam-na comunicar aos seus filhos e familiares. Foi numa vida de felicidade, de pureza e austeridade que ela se preparou para a mais íntima e mística união esponsal com o Coração de Jesus. Numa manhã, festa do Coração de Jesus, na capela do solar de Darfeld, diante da estátua que lhe era tão querida, depois de comungar, ouviu distintamente «aquela voz interior que eu não conhecia ainda, mas que hoje me é tão familiar: “Tu serás a esposa do meu Coração”. Não posso dizer o que senti naquele momento. senti-me consternada, aniquilada, confundida, e ao mesmo tempo inundada nas ondas do seu amor. Que felizes momentos! Esposa do seu coração!… eu tão pobre e miserável!… A partir desse momento eu já não podia pensar senão no Coração de Jesus como meu esposo… Que intimidade entre nós! Vivia com Ele, dizia-lhe tudo, e Ele era sempre cheio de misericórdia e de bondade para comigo».
Consagração
A perfeita Caridade traduz-se pela entrega total da pessoa ao Coração de Jesus – a consagração. Fomos consagrados pelo Baptismo, mas aquilo que nos foi dado ontologicamente no Baptismo tem de se ir desenvolvendo, com o avivar da consciência e o esforço pessoal pela vida fora. A consagração ao Sagrado Coração é precisamente esta tomada de consciência da realidade cristã no ponto central da nossa pertença pessoal, por amor, a Jesus. A devoção ao seu Coração divino faz-nos descobrir as raízes mesmas do culto cristão, faz-nos cair na conta do que é a própria essência do Cristianismo. A consagração é exigência primária desta devoção, é a expressão do amor pessoal de que se reveste o carisma que o Espírito Santo dá a cada um. Em Francisco de Assis converte-o no jogral enamorado de Deus, cantando os divinos louvores nos braços da Pobreza, sua Dama. A Inácio de Loyola transformou-o no soldado fiel, apaixonado da Maior Glória de Deus. Em Maria do Divino Coração, a consagração reveste o carácter esponsal da reparação amorosa: «Serás a esposa do meu Coração», do Coração que se lhe apresenta profundamente magoado pelos espinhos da ingratidão humana.
Reparação
Consagração e reparação são a exigência primária da devoção ao Coração de Jesus. Vivem-se em unidade – consagração reparadora: uma vida que se entrega para ser vivida com Cristo e em Cristo, numa mesma obra redentora e santificadora. Mas esta obra realizou-a Cristo pela cruz. E por isso toda a colaboração na obra redentora do Coração de Jesus tem de estar vinculada com a cruz. Uma tarde, passeando meditativamente pelas alamedas do jardim do seu solar «senti vivamente, escreveu ela, que o Senhor me dizia que teria de sofrer muito por Ele»… «Jesus falou-me dos sofrimentos porque passava, vendo-Se abandonado de todos , e pediu-me Lhe fizesse companhia. Disse-me que O aflige sobretudo mo abandono de muitos sacerdotes…» Como estes, encontramos inúmeros desabafos íntimos nas páginas da sua autobiografia, escritas em obediência ao seu Confessor – Teotónio Vieira de Castro, que foi mais tarde patriarca de Goa. Há momentos na história das almas que marcam uma vida toda; momentos em que a graça do Espírito irrompe sobre elas em avalanche, operando nelas uma nova conversão, de bem para melhor. Um desses golpes extraordinários do amor do Coração de Jesus, parece ter-se dado na Irmã Maria do Divino Coração ao passar por Manresa, a caminho de Portugal. Ia ela de viagem para o novo destino a que deus a chamara, com o coração angustiado de saudades, na incerteza do desconhecido em que ia entrar, mas na decisão firme de se dar toda à realização dos desígnios misteriosos aonde Ele a levava. A 12 de Fevereiro de 1894, passa pela santa cueva de Manresa. A figura do grande penitente de Manresa – Santo Inácio – encantava-a e subjugava-a. Foi no ardor desta oblação para o sacrifício que ela entrou em Portugal. Ela amou-o porque era a terra aonde o Coração de Jesus a conduzira, era o altar aonde ela ia imolar-se por Deus e pelas almas. Voltando mais tarde a Munster, escrevia: «A viagem segue o curso normal, tranquilo. Mas no fundo do coração sinto saudades do nosso pobre Portugal, e especialmente da minha cela junto da querida capela. Nada no mundo pode substituir para mim aquele lugar». O sacrifício só tem valor se for revestido de carácter reparador. Só é Redentor se for levado por amor, em união com o sacrifício de Cristo. Vida reparadora é a vida do Redentor que tem de ser baptizado com um baptismo de sangue, e suspira por ele, embora em sua natureza humana sinta repugnâncias da morte. Vida do redentor que Se dá às almas pecadoras, e Se identifica de tal modo com elas que faz seus os pecados delas, por elas faz penitência, sofre e morre. Maria Droste vem a Portugal para sofrer, porque, consciente da sua vocação de Irmã do Bom Pastor, vem salvar as almas, colaborar com Cristo crucificado na salvação das almas que, em Lisboa e no Porto, Ele lhe quis confiar. E por isso a cama vai ser a sua cruz redentora, na maior parte do tempo passado na nossa terra, vai ser o altar do seu sacrifício. Perguntando ela ao Senhor porque é que prolongava os seus sofrimentos e a sua doença, ouviu esta resposta: «Resgatei o género humano pela cruz, e é pela cruz que santifico as almas. Quanto mais Eu ligo umas alma à cruz, e quanto mais semelhante Eu a torno a Mim, tanto mais estreitamente Me uno com ela. Os sofrimentos dos meus eleitos completam a obra da minha redenção». A cruz é pois o altar dos eleitos do Coração de Jesus. Mas este altar é para Maria Droste não só imolação duma vítima a consumir-se por amor, mas pregação viva, exercício activo de apostolado a conquistar as almas. Por três longos anos, imóvel e afogada em dores, fazia-se transportar na sua cama portátil à sala de visitas, onde diariamente passava horas e horas a atender pessoas de todas as classes, que procuravam a “santinha Alemã” para receber dela consolação e alento. Dessa cama dirigia ainda toda a actividade e negócios da casa dumas 175 internadas, como uma energia e prudência extraordinárias. Sofrimento, oração, apostolado e actividade doméstica, eis a vivência real da consagração de Maria Droste ao Divino Coração.
Consagração do mundo ao Sagrado Coração
Mas não chegara ainda a hora para aquele corpo diáfano, e como que espiritualizado, pronunciar o seu consummatum est. Ainda não estava completada a sua missão. O Coração de Jesus queria, no dealbar do século XX, afogar o mundo numa avalanche de graça e de misericórdia. E para isso queria que o Papa, seu Vigário na terra, com os Bispos e todos os católicos, membros conscientes e responsáveis de toda a família humana, lhe fizessem solenemente a consagração do mundo inteiro. E é a Irmã Maria do Divino Coração a eleita de Deus para ser a apóstola desta consagração. É ela que tem de se dirigir ao Papa com uma missão divina para toda a Igreja, como outrora Santa Catarina de Sena. Mas o sinal de autenticidade da sua missão divina é precisamente o recrudescer dos seus padecimentos. E quando pela terceira vez o Coração divino se dirige à Irmã Maria a pedir a intervenção dela junto de Leão XIII, pergunta-lhe ainda «se estava disposta a suportar toda a espécie de sofrimentos, humilhações e desprezos». «Em verdade, em verdade vos digo, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, ficará só; mas se morrer, dará muito fruto. Quem ama a sua vida, perdê-la-à; e quem neste mundo aborrece a sua vida, conservá-la-á para a vida eterna. se alguém quer servir-Me que Me siga: e onde Eu estiver, ali estará também o meu servo» (Jo 12, 24-26).
De Munster até ao Porto
Para os leitores que desconheçam ainda a sua admirável figura, apresentamos a sua vida em traços muito esquemáticos: Filha dos condes Droste Zu Vischering, nasceu em Munster, na Vestefália (Alemanha), a 8 de Setembro de 1863. Passou a infância no castelo de Darfeld, não longe daquela cidade, no seio duma família profundamente cristã. «Desde a mais tenra idade, escreve ela, senti a dita de ser filha da Santa Igreja». No Natal de 1883 consagra-se a Deus pelo voto de castidade perpétua. E Ele apodera-Se dela e marca-lhe a consagração com o sinal da cruz, fazendo-a passar por dilatada e penosa doença. Com o espírito embalado por longo tempo em sonhos de heroísmo missionário, no dia 1 de Julho de 1888, esperando na Igreja paroquial a vez de se confessar, ouve subitamente a voz do Senhor: «Tens de entrar no convento do Bom Pastor». Com a vocação irrompe na sua alma inocente a ânsia de salvar a juventude extraviada, ânsia tão intensa quanto era intenso o horror por toda a impureza. A obra da regeneração ou da preservação da mulher em perigo, é com efeito, o campo especifico de apostolado da Congregação do Bom Pastor. A 10 de Janeiro de 1889 toma o hábito religioso no convento de Munster, no mesmo dia em que, no Carmelo de Lisieux, Teresa do Menino Jesus recebeu o dela. Professou a 19 de Janeiro de 1891. Após três anos de total dedicação ao apostolado das penitentes, próprio do seu Instituto, é enviada a Portugal em 1894. Tinha 31 anos de idade. Depois de três meses passados em Lisboa, chega ao Porto como Superiora do Recolhimento do Bom Pastor na Rua Vale Formoso (Paranhos), a 17 de Maio de 1894. De lá escreve ela pouco depois: «Vivemos numa situação angustiosa. A casa está em ruínas, devorada por dívidas que nos sufocam. vejo, porém, e sinto que deus está comigo, e assim cresce, cada dia mais, a minha coragem, embora por vezes isto seja difícil de suportar… Só temos em caixa cinco ou seis marcos, e temos de alimentar 120 pessoas… Sinto-me tão portuguesa, que não me importo com tanto desconforto, tanto frio e tanta humildade…». E a sua tenacidade, aliada a uma absoluta confiança no Coração de Jesus, realiza o milagre de transformar aquela casa e comunidade em ruínas num florescente jardim de Deus. A 21 de Maio de 1896 cai da cama, esgotada de trabalho, para nunca mais se levantar: uma ostiomielite que a paralisa com dores atrozes constantes. É nesta longa, heróica crucifixão, que a Irmã Maria se imola pelos pecadores, pelos sacerdotes, pela Igreja, por Portugal. «Muitas vezes na minha doença, quando sentia ardentes desejos de morrer, Nosso Senhor, duma imagem dos Passos, me dizia: «Então queres que Eu leve sozinho a cruz de Portugal?» (Carta de 20.XI.1896). Às 3 horas da tarde do dia 8 de Junho de 1899, ao hino das primeiras vésperas da festa do Coração de Jesus, quando por todo o mundo católico se fazia o tríduo solene de preparação para a consagração ao mesmo divino Coração, a vítima de Paranhos consumava o seu sacrifício. No dia 11, o papa Leão XIII realiza aquilo que ele mesmo declarou ser o «acto mais grandioso do seu Pontificado» – a consagração do mundo inteiro ao Sagrado Coração de Jesus. Este acto foi-lhe pedido por Cristo. A mensageira transmissora da mensagem de Cristo foi a irmã Maria do Divino Coração.
Ermesinde
Repousam as suas venerandas relíquias em Ermesinde, na Igreja do Coração de Jesus, erecta pelas suas filhas em cumprimento do desejo ardente da Bem-aventurada, expresso por solene promessa. Na primeira sexta-feira de Julho (ou Agosto) de 1897, recebeu ela ordem do Senhor: «Deves erigir-Me aqui um lugar de reparação, e Eu erigirei nele um lugar de graças. depois disse-me que queria que esta Igreja fosse sobretudo um lugar de reparação pelos sacrilégios, e para atrair graças e bênçãos sobre o clero». A construção deste templo foi uma duas suas últimas preocupações. Ela mesma, no seu leito de dor, mal podendo segurar um lápis entre os dedos, traçou as linhas arquitectónicas. Não quis o Senhor dar-lhe em ida a alegria de ver realizado o seu sonho. Realizaram-no as suas filhas em Ermesinde. Este templo começaram a erguê-lo em Paranhos, junto à casa da rua de Vale Formoso, onde a Bem-aventurada falecera. A revolução de 1910 veio interromper a construção. Mas a premente recomendação da Irmã Maria não se apagou no coração das Irmãs do Bom Pastor: «No caso de morrer antes de ter edificado a Igreja, peço às minhas muito amadas Irmãs e Filhas espirituais… dêem cumprimento à promessa que hoje faço para assim corresponder aos desejos de Nosso Senhor, e consolar o seu divino Coração». E cumpriram. Em Ermesinde ergue-se majestosa a Igreja do Coração de Jesus. Sob as suas abóbadas repousam agora as relíquias da Bem-aventurada. Ali, diante da Hóstia consagrada em constante exposição, ajoelham perpetuamente almas em adoração reparadora. Ao vê-las sente-se ainda o palpitar ardente da irmã Maria do Divino Coração. «Deves erigir-Me aqui um lugar de reparação, e Eu erigirei nele um lugar de graças». O lugar de reparação está erecto. A palavra do Senhor não falhará!
Recolha e transcrição directa através do texto do livro SANTOS DE CADA DIA, editado por www.jesuitas.pt, por António Fonseca
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