Sobre Paulo e a Voz de Deus
Consta que Paulo não era um homem simpático e não foi propriamente um santo fácil. Eu, com uma cultura religiosa média, o que me vinha à cabeça era, quase só, o episódio da estrada de Damasco, a tremenda e imperativa interpelação de Deus, por ser Paulo quem era e como era, peça essencial à expansão e crescimento da Igreja. Até ao dia em que me pediram um texto sobre as cartas de São Paulo aos Coríntios e, embora ciente da minha incompetência, afoitei-me e mergulhei na dimensão paulina. Anos depois, António Pedro de Vasconcelos, com quem viajava para Helsínquia, numa longa conversa sobre o humano e o divino, com a prolixidade inteligente que se lhe reconhece, trouxe São Paulo à colação a propósito do livro de Teixeira de Pascoaes e da apresentação que ele próprio escrevera, na terceira edição de São Paulo. O essencial parecia ser a excepcionalidade do desígnio e a solidão que sempre o acompanha. Naquele "ai de mim se não evangelizar" esgotam-se todas as dimensões do tremendo compromisso de um permanente desvendar da Palavra contra todos os frios raciocínios.
Por isso fiquei marcada pelas palavras de São Paulo quando diz que foi enviado por Cristo a pregar "e sem recorrer à sabedoria da linguagem para não esvaziar da sua eficácia a cruz de Cristo", porque a ciência incha mas a caridade edifica. Aliás a enorme premência, senão mesmo angústia, que perpassa nestas cartas centra-se exactamente nisto: como explicar aos homens e mulheres daquela comunidade que todos foram chamados à santidade? Que esse chamamento é radical e se opera na convicção do homem novo, redimido e liberto. Como, se toda a cultura é adversa, se a própria natureza humana é adversa, se as aparentes evidências são adversas? Quantos perceberão o sentido de Deus ter tornado louca a sabedoria deste mundo?
Já António Pedro me remetia para o São Paulo de Pasolini. Este vê-o como o homem que demoliu revolucionariamente, com a simples força da sua mensagem religiosa, um tipo de sociedade fundada sobre a violência de classe, o imperialismo e, sobretudo, a escravatura. De regresso a Pascoaes, fixo esta afirmação extraordinária: "A Poesia é de São Paulo, como a Ciência é de Lucrécio", "No apóstolo, a ideia platónica abrasou-se em amor divino." Mas a Pascoaes interessa sobretudo aquele tempo histórico, do ano 37 a 64 da nossa era, de um cristianismo espontâneo e vivo, antes de sistemas acabados, um tempo de Deus ainda sem teologia.
São Paulo é tudo isto e mais do que isto, tudo o que ainda não conseguimos ver nem sentir. Esta universalidade total, de espaço e vocação, o abrir corações e territórios, permitem que cada um se aproprie dele, de uma parte dele, nem sempre a mesma, uma escolha moldada no que se sente, na fé que se tem, utopista ou santo, em qualquer caso património comum.
Há dias, num voo para Nova lorque, folheando um jornal português vi uma notícia de página inteira sobre um movimento inglês que se deu ao trabalho de comprar anúncios em autocarros que dizem
"Deus provavelmente não existe. Agora deixe de se preocupar e goze a vida".
Tolice, porque se assim se pensa não se percebe a necessidade de o anunciar e se afinal é tão só uma probabilidade pode que a preocupação se agrave. É curiosa esta senha em calar a voz de Deus numa Europa desnorteada, incapaz de ter pensamento, desígnio ou liderança, transformada num parque jurássico entregue a movimentos infantilizadores e primários.
Para perceber a sede que o mundo tem de espiritual idade e transcendência, de situar o sentido da vida e da morte, do bem e do mal, bastou ouvir e ver a América, na investidura do novo Presidente, a rezar a mais universal das orações, o pai-nosso.
Ou, nas suas diferentes igrejas, cantar o God bless America, incluindo em St. Patrick, onde assisti à missa.
Ou ler o último capítulo de O homem em queda, de Don DeLillo:
"Mas não é o mundo em si que nos conduz a Deus? A beleza, o sofrimento, o terror, a aridez do deserto, as cantatas de Bach."
E, claro, reler São Paulo.
In Jornal Público de 29 de Janeiro de 2009, Maria José Nogueira Pinto
António Fonseca
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