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TENDE ENTRE VÓS OS MESMOS SENTIMENTOS DE QUEM ESTÁ EM CRISTO JESUS”
Para a conduta moral, não basta saber o que fazer: há que fazê-lo. Senão, quem não vive conforme pensa, acaba por pensar conforme viva. Não será isso que, no fundo, está na origem de certas leis, claramente imorais, por aí vigentes?
O mais específico da moral cristã está na sua fundamentação. É verdade que o que é bom em si, está inscrito na minha natureza humana, e quer a minha consciência quer a minha razão podem dizer-me que o devo fazer. Mas noto que há outra lei nos meus membros a lutar contra a lei da minha razão e a reter-me prisioneiro na lei do pecado que está nos meus membros (Rm 7, 23; cfr 2, 14s). Foi desta teia asfixiante que Cristo nos libertou. E, se me confio à sua graça, sou transformado pelo seu Espírito que se torna Lei em mim: a lei do Espírito, que me não mostra apenas o que devo fazer, mas me capacita para o realizar (8, 2)... e até pode transformar em bem o que por outros é visto como um mal.
Um exemplo deste contributo da mensagem cristã não só para a prática moral, como até para o seu conteúdo, é-nos dado por Paulo em Fl 2, 1-11, numa carta escrita da prisão e para cristãos que se viam, também eles, intimidados pelo meio ambiente em que viviam (I, 27-30). Provavelmente porque, na sua prática de vida, discordavam de hábitos nele dominantes. Como acontece connosco... ou deve acontecer.
Fl 2, 1-11
Se há, alguma exortação em Cristo, se há algum conforto da caridade, se há alguma comunhão do Espírito, se há algum afecto e misericórdia, então fazei com que seja completa a minha alegria: tende os mesmos sentimentos, tendo a mesma caridade, vivendo em harmonia, em ordem a um só sentimento, nada fazendo por egoísmo nem por vaidade, mas, com humildade, considerando os outros superiores a vós próprios, não tendo cada um em mira os próprios interesses, mas todos e cada um exactamente os dos outros.
Tende entre vós os mesmos sentimentos de quem está em Cristo Jesus
Ele que, sendo de condição divina, não se prendeu ciosamente à sua igualdade com Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de escravo. Feito igual aos homens, e sendo, ao manifestar-se, identificado como homem, rebaixou-se a si mesmo, feito obediente até à morte e morte de cruz.
Por isso mesmo é que Deus o superexaltou e o agraciou com o nome que está acima de todo o nome, para que ao nome de Jesus se dobrem todos os joelhos, os dos seres celestes, terrenos e infraterrenos, e toda a língua proclame: “Jesus Cristo é Senhor!”, para glória de Deus Pai.
É em situações de perseguição que os cristãos mais precisam de viver unidos. Mas, será apenas porque a união faz a força? A esta reacção instintiva, Paulo junta um outro motivo que, em circunstância alguma, podemos perder de vista, tão fundamental ele é para a nossa identidade cristã. O sofrimento é apenas uma ocasião, sem dúvida mais propícia, para reforçarmos a comunhão entre nós e nela darmos testemunho; ou melhor, de Cristo que nos une e a quem constantemente devemos recorrer, para vivermos conforme somos e, vice-versa, nos tornarmos, mais naquilo que somos.
Paulo diz-nos, em primeiro lugar, o que devemos fazer (vv. 1-4)... e que ele próprio realiza, pelo modo como no-lo diz. A exortação, o conforto, a comunhão e o afecto, a que começa por se referir, exprimem atitudes e qualidades que os cristãos de Filipos já punham em prática e são para ele motivo de alegria. Que bela pedagogia: aproveitar o que há de positivo nos educandos, para os motivar a prosseguir no caminho encetado. Se já são capazes de tanto, serão certamente capazes de muito mais. Pelo menos prestarão mais atenção ao que o educador tem para lhes dizer. Para mais, tratando-se de algo que, no seu conteúdo, ele próprio mostra no acto educativo: no caso presente, a comunhão de sentimentos, identificativa não apenas dos cristãos nas suas relações mútuas, mas também do Apóstolo na sua relação com eles. Não se trata, portanto, de uma simples estratégia pedagógica, mas da vivência, pela pedagogia usada, da mensagem transmitida.
Esta está sintetizada na exortação: tende os mesmos sentimentos. Tudo o resto (vv. 2c-4) é um reforço explicativo, centrado, por sua vez, na humildade. No original grego há mesmo uma afinidade verbal entre os dois termos: à letra, a humildade consiste em rebaixar-se no sentir. E o verbo traduzido por sentir ou ter sentimentos consiste num acto que envolve o intelecto e a vontade, o pensar e o querer. Portanto, a comunidade atinge a unidade de sentimentos, se cada um dos seus membros totalmente se humilhar. Mas quem e de que modo?
Na sociedade greco-romana de então, a humildade era eticamente tão desprezível como desprezíveis eram todos os socialmente humildes. Daí que, em vez humilhação, o que todos desejavam era ascender ao mais alto nível social. Ao contrário, na tradição judaica multiplicam-se conselhos como este: Quanto maior fores, mais te deves humilhar, e encontrarás benevolência diante de Deus (Sir 3, 18). E a afirmação de que Deus se opõe aos orgulhosos, enquanto aos humildes concede a sua graça (Pr 3. 34), foi assumida no NT, nomeadamente nas palavras de Jesus: Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado (Mt 23, 12; Lc 14, 11; 18, 14).
Na sua origem está a especial solicitude de Deus para com os pobres e humildes, recorrente em todo o AT e posta em prática por Jesus no anúncio do Reino de Deus. Por isso, a humildade a que Paulo exorta, opondo-a tanto ao egoísmo e à vaidade como à busca dos próprios interesses, em vez dos interesses dos outros, esta humildade só tem sentido como condição para uma caridade à medida da que Deus manifestou em Jesus Cristo. É nela que está quer o fundamento quer o objecto dos mesmos sentimentos que nos unem em Igreja. Vivemos na caridade, na medida em que dela vivermos.
Para isso é que Paulo cita o hino (vv. 6-11), no qual Cristo é apresentado, não como simples modelo dos nossos sentimentos mas como sua origem. Assim o indica a tradução correcta do v. 5 e o próprio conteúdo do hino, no conjunto das suas duas estrofes (vv. 6-8.9-11). É ao despojamento da sua condição divina, para se humilhar até à condição de escravo, coroada pela atribuição do nome divino do Senhor. Ou seja, em Cristo realizou-se o citado princípio ético de que quem se humilha será exaltado.
Na medida em que a Ele nos humilharmos, reconhecendo-o como Senhor, estamos em condições de também nos humilharmos uns aos outros, para, com Ele em cada um de nós, prosseguirmos pelo caminho da caridade, do Espírito e da misericórdia (v. 1), tão necessários para a nossa conduta cristã... para glória de Deus Pai!
D. Anacleto de Oliveira - Bispo Auxiliar de Lisboa
Livro: Um Ano a Caminhar com S. Paulo
17-02-2009
António Fonseca
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