Depois da extensa "biografia" do Beato Frederico Ozanam, fundador da Sociedade de S. Vicente de Paulo, publicada ontem, segue-se agora a - também um pouco extensa -"biografia" da Irmã Rosália Rendu a quem Ozanam e seus companheiros recorreram utilizando os seus vastos conhecimentos na resolução das dificuldades com que tiveram de lutar, nomeadamente no miserável bairro de Saint Marceau, em Paris
Impossível fazer a história da Sociedade de S. Vicente de Paulo sem citar o nome desta "Filha da Caridade", tão notável foi o papel por ela desempenhado na entrada em exercício da primeira Conferência de Caridade e mais tarde no seu desdobramento, que deve ser tomado como o acto que marca a formação da Sociedade.
Ficaria pois certamente incompleta a galeria dos nossos modelos vicentinos sem a inclusão do nome da Irmã Rosália, iniciadora dos nossos fundadores na prática da Caridade dentro do espírito de S. Vicente de Paulo. Foi, de facto, ao seu grande coração, experimentado conselho e profundo conhecimento do miserável e revolto bairro de Saint Marceu, em Paris, que Ozanam e os seus companheiros recorreram nas dificuldades dos primeiros passos; e ela apressou-se a guiá-los até às moradas dos pobres, deu-lhes os primeiros vales, conseguiu recursos financeiros e, melhor que tudo isso, prestou-lhes os conselhos mais valiosos, sempre cheios de respeito pela pessoa do pobre, numa admirável lição de recristianização pelo amor e pelo exemplo da sua vida.
A base do ensinamento que ministrava nas reuniões, que no fim dum dia de trabalho tinha com os primeiros vicentinos a quem chamava "seus filhos", girava sempre à roda do amor aos pobres; da misericórdia de que, a exemplo do Divino Mestre, se devia sempre usar para com os seus defeitos, atribuíveis às privações que passam e à falta de educação; do apreço em que eles tinha, o carinho que se lhes dedicasse, ao qual eram bem mais sensíveis do que ao auxilio monetário.
Nestes fundamentos assentou o espírito da Sociedade, logo fixado nas suas regras, e pode-se assim dizer que da Irmã Rosália recebemos a técnica da visita domiciliária.
Mas foi também decisiva a sua opinião em favor do desdobramento da primeira Conferência, onde o excessivo número de Vicentinos já não permitia regular rendimento. A ideia da separação e corte da então agradável intimidade das reuniões, não podia porém ser encarada por grande número deles que obstinadamente defendiam a unidade.
Foi preciso que um dos proponentes da divisão exclamasse: "Esta opinião não é minha, é da Irmã Rosália". Tanto bastou para que se calassem todos os protestos e para que fosse acolhida com respeito a ideia da divisão. Podemos pois afirmar que ela foi, neste passo, o porta-voz da Providência, que contrariamente ao pensamento dos nossos fundadores, preocupados com o ideal da intimidade na Conferência, marcara nos seus desígnios a universal projecção da obra, só possível na multiplicação dos seus núcleos.
Impunha-se tornar bem conhecida dos vicentinos a intervenção directa da Irmã Rosália na fundação da nossa Sociedade, mas torna-se também necessário dá-la a conhecer sob outros aspectos, por alguns apontamentos da sua vida, que mostram o sublime grau de heroicidade do seu amor ao próximo, que mereceu a introdução da causa de beatificação e que cabalmente explicam o elevado prestigio de que gozou entre os primeiros vicentinos.
Criada, juntamente com mais três irmãs, num solar da província, em França, por sua mãe, que muito cedo enviuvara e repartia o tempo entre a educação das filhas e o socorro aos pobres da vizinhança, Joana Rendu desde muito nova viveu as constantes inquietações e gravíssimos riscos do período do Terror, em que a sua corajosa mãe não hesitava em salvar a vida, embora com risco da própria, a quantos membros do clero e da nobreza ali procuravam refúgio.
Que impressão não teria feito aos sete anos de Joana acordar uma madrugada em sobressalto e ver o criado Pierre, admitido ao serviço poucos dias antes, celebrar missa no seu próprio quarto! Era o bispo de Annecy que, perseguido, se acolhera àquela hospitaleira casa, disfarçado de criado.
Viveu assim desde criança o drama daquela sombria hora e, temperadas as energias no corajoso exemplo de sua mãe, longe de se atemorizar, compreendeu a necessidade de se robustecer para a grande luta que seria a sua vida inteira.
Aos quinze anos teima de tal maneira para fazer um estágio como praticante de enfermeira no Hospital de Gex, que consegue ser admitida; e é aí, em meio de tantas dores e tanta miséria, que sente o chamamento de Deus para a vida religiosa. Mais uma vez consegue vencer a resistência da mãe, mal segura da consistência da vocação em tão tenra idade, com estas palavras decididas: "Amar-se-á menos a Deus, porque se é jovem? Naqueles anos terríveis do Terror, em que, a cada minuto, arriscavas as tuas e as nossas vidas para dar guarida aos perseguidos, consideraste acaso que os teus filhos eram demasiado novos para suportar as possíveis consequências da tua caridade, se alguém nos denunciasse?"
Assim vai fazer o noviciado e, aos vinte e oito anos, Joana Rendu, agora a Irmã Rosália, é Superiora da Casa das Filhas da Caridade no bairro da miséria e do vício de Saint Marceau, em Paris. E aí começa a sua espantosa tarefa de recristianização pela caridade, que as Conferências de S. Vicente de Paulo se proporão seguir. Obtido o subsídio de particulares e do Município, organiza os socorros: cria uma rouparia, uma farmácia, o serviço de vales de pão e diversas outras formas de socorros e parte à conquista das mansardas. Conquista pelo amor de Cristo na pessoa dos pobres, aos quais assiste em toda a sorte de dificuldades e dores, curando as suas chagas, levando-lhes o indispensável em géneros ou roupas, congraçando-as, perdoando-lhes os erros e vícios e com eles chorando, protegendo-os quando perseguidos, fossem quais fossem os ideais.
Nesta acção tão intensa e tão arriscada consumiu a sua vida, tornando-se uma das figuras mais extraordinárias e mais populares de Paris. No ano de 1833 sucediam-se as revoltas; no bairro de Saint Marceau levantavam-se constantemente barricadas e o povo batia-se ferozmente contra as tropas regulares. Então a Irmã Rosália improvisava socorros e não receava expor-se percorrendo as barricadas e esforçando-se por acudir a todos, sem distinção de partidos.
O Prefeito da Polícia de Paris passara um dia mandato de captura contra ela, por protecção a um oficial da Guarda comprometido como revolucionário; o oficial que recebe a ordem dispõe-se a cumpri-la, mas vai prevenindo o Prefeito de que todo o bairro pegará em armas para defender a Irmã Rosália. Então é o próprio Prefeito que se propõe ir lá pessoalmente, pois quer conhecer que razões haverá para tanta dedicação.
Enquanto, por não ter sido reconhecido, é convidado a aguardar a sua vez, tem ocasião de assistir emocionado ao desfile duma multidão de miseráveis, que vinham ali expor as suas dificuldades e pedir socorro e conselho. Interrogado finalmente sobre o motivo da sua presença, comunica então que acabava de rasgar um mandato de captura contra ela, mas vinha ali aconselhar-lhe que não voltasse a criar situações difíceis, ao que a Irmã Rosália responde não poder prometê-lo, porque uma Filha de S. Vicente de Paulo não tem o direito de faltar à caridade, quaisquer que sejam as consequências; mas promete-lhe também que, se ele alguma vez, perseguido, lhe pedir socorro, tudo fará para o salvar!
Num, desses frequentes e sangrentos tumultos, um oficial da Guarda, à frente da sua companhia, assalta a barricada que ficava mesmo junto à porta do Convento; mortos parte dos homens e postos em fuga os restantes, encontra-se só, e é feito prisioneiro pelos populares; mas encontrando aberta a porta, consegue entrar no Convento, onde é perseguido pelos amotinados, sedentos de sangue.
A Irmã Rosália barra-lhes a passagem, perguntando se teriam coragem de o matar ali, ao que respondem que o levarão primeiro para fora. Resolutamente a Irmã Rosália, fez-lhes frente; juntam-se-lhe outras Irmãs; porém a multidão sublevada impacienta-se com aquela muralha de cornettes brancas; apontam-se espingardas, mas então a Irmã Rosália roja-se diante daqueles homens e súplica: "Há cinquenta anos que vos consagrei a minha vida; por tudo quanto fiz às vossas mulheres e aos vossos filhos, peço-vos a vida deste homem!"
Os revoltosos foram debandando lentamente, alguns deles com as lágrimas nos olhos e então o oficial perguntou: "Quem sois?" - "Quase nada", respondeu ela: "uma Filha da Caridade".
Noutro dia correu Paris sob o tiroteio, saltando de barricada em barricada, à procura do corpo dum oficial casado com uma sua amiga de infância; e doutra vez ainda atravessou entre os combatentes gritando: "Acham que posso viver enquanto os meus filhos se matam uns aos outros?" - "Vão matá-la, Irmã". "Não atirem!" - gritavam vozes aflitas. E a luta cessou naquele sector.
Os episódios apontados põem em evidência o extraordinário domínio que a Irmã Rosália conseguiu sobre a massa do povo de Saint Marceau, domínio imposto pela força da Caridade: deu-se inteiramente àquelas almas, cujos defeitos e vícios olhou compassivamente e em favor das quais se desentranhou em socorros, benefícios e serviços de toda a ordem, arriscando a vida debaixo de fogo e também sob o contágio, como por exemplo no combate à epidemia de cólera que dizimou o bairro de Saint Marceau, em que o grupo de Ozanam colaborou nos socorros por ela organizados. Tiveram então estes ocasião de observar como a desconfiança, com que a principio eram recebidos, cedia lugar à maior franqueza - portas abertas, rostos desanuviados - desde que declaravam vir do mando da Irmã Rosália.
No dia em que morreu a Irmã Rosália - Legião de Honra, cantada em coplas populares pelos pobres de Paris, que a amavam como à mãe - todo o bairro de Saint Marceau desfilou diante do seu corpo e acompanhou-a a enterrar. Paris inteiro se comoveu e sacerdotes vindos de toda a França celebraram Missa junto do seu cadáver. A administração Municipal ergueu-lhe um busto no átrio do seu palácio, busto que, vinte e quatro anos mais tarde, viria a ser ridiculamente apeado por uma vereação facciosamente anti-clerical, que o considerou como um desafio ao livre pensamento!!!
Que este pálido relato ajude a criar entre os vicentinos interesse pela figura da extraordinária heroína da Caridade que foi a Irmã Rosália, dispondo-os a imitar as suas sublimes virtudes e também a juntarem as suas orações para pedir a Deus que possamos, em breve tempo, ver sobre os altares mais uma santa da família de S. Vicente de Paulo.
LOUVADO SEJA NOSSO SENHOR JESUS CRISTO
António Fonseca
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