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“QUE TODA A PESSOA SE SUBORDINE ÀS AUTORIDADES PÚBLICAS”
Fala-se muito dos direitos que cabem aos cidadãos por parte do Estado. Talvez se fale menos dos correspondentes deveres. Mas pior ainda é se os não cumprem. Para nós, cristãos, por razões que vão além do circuito jurídico de direitos e deveres.
Paulo adverte-nos para isso em Rm 13, 1-10, em termos, no entanto, nada fáceis de interpretar. As suas palavras foram usadas, ao longo da história, designadamente para sancionar medidas expressivas de um absolutismo estatal, contrário ao bem do homem e à mensagem cristã.
Se, porém, as lermos no seu contexto histórico e literário, apercebemo-nos de que Paulo, com elas, não expõe qualquer teoria sobre o sistema estatal, mas apenas se dirige às comunidades cristãs de Roma, para as ajudar a viver e sobreviver, nos condicionalismos a que estavam sujeitas; além do reduzido número dos seus membros, encontravam-se em pleno processo de autonomização, após após a separação do berço onde tinham nascido, as sinagogas judaicas.
Mas, fora disto, os princípios por que Paulo se orienta são perfeitamente aplicáveis e até necessários nos nossos dias.
Rm 13, 1-10
Que toda a pessoa se subordine às autoridades públicas, pois não existe autoridade que não venha de Deus e as que existem foram por Deus estabelecidas. Por isso quem resiste à autoridade, opõe-se à ordem querida por Deus, e os que se opõem receberão a condenação. É que os detentores do poder não são temidos por quem pratica o bem, mas por quem pratica o mal. Não queres ter medo da autoridade? Faz o bem e receberás os seus elogios. De facto, ela está ao serviço de Deus para te incitar ao bem. Mas, se fazes o mal, então deves ter medo, pois para alguma coisa ela traz a espada. De facto, ela está ao serviço de Deus, para castigar aquele que pratica o mal. É por isso que é necessário subordinar-se, não só por causa do castigo, mas também por causa da consciência.
É também por essa razão que pagais impostos; aqueles que têm de se ocupar disso são funcionários de Deus. Dai a cada um o que lhe é devido; o imposto, a quem se deve o imposto; a taxa, a quem se deve a taxa; o respeito, a quem se deve o respeito; a honra, a quem se deve a honra.
Não fiqueis a dever nada a ninguém, a não ser isto: amar-vos uns aos outros. Pois quem ama o outro cumpre a Lei. De facto, «não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás», bem como qualquer outro mandamento, estão resumidos nesta palavra: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo». A caridade não faz mal ao próximo. Portanto, é na caridade que está o cumprimento da lei.
Do verbo sub-ordinar-se (v. 1 e 5) faz parte o termo ordem (v. 2). E como sem ordem não há sociedade que sobreviva, por isso, além de um dever, é um bem para cada cidadão subordinar-se às normas e instâncias que garantem a sua ordem. Mas uma subordinação que seja activa: em que eu e cada um, cumprindo o que me compete, contribuo realmente para o bem comum. Só assim estou em condições convincentes, para reivindicar os meus direitos e criticar e corrigir quem não faz o que deve... e, ainda, para compreender o fundamento teológico das exortações de Paulo.
Que a ordem na sociedade é, desde sempre, querida por Deus (v. 2), é óbvio. Basta ler os relatos da criação do mundo (Gn 1-2) e do povo de Israel (Ex 20ss). Que dessa ordem faça parte a existência de autoridades públicas que, ao serviço de Deus, promovam o bem dos cidadãos, incitando os que o praticam e castigando os prevaricadores (vv. 3s), está igualmente fora de questão. O regime monárquico em Israel foi aprovado por Deus, ainda que travando os seus abusos, por meio dos profetas. Que cada cidadão contribua para os cofres do estado, pagando os devidos impostos e taxas (v. 6s), faz parte do mandamento do Decálogo que manda não furtar. Que não existe autoridade que não venha de Deus (v. 1), era já convicção corrente nos escritos sapienciais (Pr 8, 15s; Sir 17, 17; Sb 6, 3s; Dn 2, 21). Que os detentores da autoridade tenham consciência dessa dependência, só os beneficiaria, mas não é indispensável. O importante é que pratiquem o bem, conforme exige a natureza humana, criada por Deus.
O problema é o não fazem. Como se pode dizer, nesses casos, que as autoridades públicas que existem, foram por Deus estabelecidas (v. 1)? Se ao menos Paulo distinguisse entre fiéis e infiéis à vontade de Deus. Mas não. Também aos infiéis toda a pessoa se deve subordinar (v. 1). Mesmo quando as leis que promulgam são claramente imorais? Ou, pela espada, se recorre à pena de morte para eliminar os prevaricadores (v. 4)? Ou ainda, como era corrente então, o sistema de impostos desrespeitava, no montante e no modo como eram extorquidos, as normas mais básicas da justiça e do respeito pelos bens e a vida das pessoas? Como subordinar-se a quem, com tudo isso, em vez de ordem, era causa de desordem moral?
Que Paulo não apela, sem mais, a uma subordinação cega e resignada, dá-o já a entender, quanto ao medo do castigo, no juízo final, acrescenta razões de consciência (v. 5). Esta é a última e decisiva instância para saber o que devo fazer e como ajuizar a responsabilidade moral dos meus actos: a consciência, iluminada pela fé que actua pela caridade (Gl 5, 6). É nesse sentido que, depois de apelar ao pagamento de todas as dívidas (v. 7), Paulo conclui: Não fiqueis a dever nada a ninguém, a não ser isto: amar-vos uns aos outros (v. 8). É pela caridade, como dever ilimitado, que me tenho de orientar quanto ao cumprimento de todas as leis (v. 9), em duas vertentes:
1. Quem ama o outro cumpre a Lei em toda a sua plenitude (v. 8); os quatro preceitos da segunda parte do Decálogo citados (v. 9) e todos os outros, incluindo o pagamento de impostos e a subordinação às autoridades públicas. Mas cumpre-os, não (só) por medo do castigo, mas porque assim não faz mal ao próximo (v. 10). E, se o bem dos outros é a medida dos meus actos, então por eles faço até o que não está estipulado por lei. A caridade não tem limites.
2. E, porque não tem limites, quem, ama, pode também ver-se obrigado a não cumprir o que está legislado: ou porque a lei em causa imoral ou porque as circunstâncias assim o exigem. Se, num caso e no outro, cumprir a lei limita ou destrói o bem do próximo, então, por consciência, não devo fazer. Sempre?
Pode também haver situações em que a consciência me obriga a fazer o que não devia, para evitar males maiores. Era o caso das comunidades cristãs de Roma. Nas circunstâncias em que se encontravam, a rebelião contra a ordem pública ser-lhes-ia fatal. Porque a caridade é paciente, ela tudo espera, tudo suporta (1 Cor 13, 4.7), na certeza de que, assim e a seu tempo, o bem triunfará. Não foi assim que Cristo triunfou sobre a morte?
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