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“NÃO SABEIS QUE O VOSSO CORPO É TEMPLO DO ESPÍRITO SANTO?”
Segundo a concepção antropológica originária da Grécia antiga e mais comum entre nós, o ser humano é composto de dois princípios que podem existir separadamente: a alma espiritual e imortal e o corpo matéria, em que a alma está encerrada até à morte.
Não admira que, nesta perspectiva, a vida no corpo fosse vista como um mal, com duas reacções extremas: o desregramento de costumes ou a ascese exageradamente rigorosa. A primeira baseava-se na convicção de que a esfera corporal não afecta a espiritual. Com a segunda, procurava-se antecipar a libertação definitiva da matéria, esperada para depois da morte. Num caso como no outro, a vítima é o corpo.
Paulo teve, conforme mostra em 1 Cor, de confrontar-se com as duas atitudes entre os cristãos de Corinto, designadamente em relação à sexualidade. É que a mensagem cristã, ao proclamar a liberdade perante a Lei, em vez de pôr termo aos referidos desequilíbrios, estava a agravá-los, particularmente o primeiro. Tudo me é permitido! – diziam alguns cristãos, convencidos de estar totalmente possuídos pelo Espírito, para justificar a sua conduta moral, nas relações que mantinham com prostitutas.
A isto responde Paulo em 6, 12-20, com o sentido cristão da sexualidade. Insere-o numa teologia do corpo humano, não menos necessária nos nossos dias. E não apenas para os homens, como é o caso presente.
1 COR 6, 12-20
Tudo me é permitido, mas nem tudo é útil. Tudo me é permitido, mas eu por nada me deixo dominar. Os alimentos são para o ventre, e o ventre para os alimentos, mas Deus destruirá tanto aquele como estes. O corpo, porém, não é para a impureza, mas para o Senhor, e o Senhor é para o corpo. E Deus, que ressuscitou o Senhor, há-de ressuscitar-nos também a nós pelo seu poder.
Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo? Iria eu então tomar os membros de Cristo, para fazer deles membros de uma prostituta? De maneira alguma. Ou não sabeis que aquele que se liga a uma prostituta, torna-se com ela um só corpo? Pois, como diz a Escritura, «serão os dois uma só carne». Mas quem se liga ao Senhor, forma com Ele um só Espírito.
Fugi da impureza. Todo o pecado que o homem comete é exterior ao seu corpo, Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo que habita em vós, porque o recebestes de Deus, e que vós já não vos pertenceis? Fostes comprados por um alto preço. Glorificai, pois, a Deus no vosso corpo.
Não foram cristãos de Corinto os primeiros e únicos a dizer: Tudo me é permitido! Antes deles, já seguidores de correntes filosóficas, como os estóicos e os cínicos, diziam o mesmo. E hoje continua a haver quem assim pense ou deseje. E bem. Quem não aspira a manter-se senhor de si, isento de domínios destruidores da sua pessoa? E se houve alguém que se tenha batido pela liberdade do cristão, foi Paulo.
Por isso, não podia ser sua intenção limitá-la, quando, ao slogan dos Coríntios, acrescenta: Mas nem tudo é útil (...); mas eu por nada me deixo dominar. Isto é, não me deixo dominar por nada que não seja útil. Mas útil a quem? Certamente a mim próprio, à integridade da minha pessoa. É por isso que luto, para me manter livre. Mas, então, por que coisas ou pessoas me não devo deixar dominar, para me conservar íntegro?
É aqui que começavam a divergir as posições entre Paulo e os Coríntios. Para estes, nem os alimentos nem o ventre que os consome são fundamentais, sobrevivem à destruição da morte. Nisto ainda Paulo concorda com eles... mas, desde que se não faça do ventre o corpo. E porquê? Para ele, seguindo a antropologia semítica dominante na tradição bíblica, o corpo não é uma parte do ser humano separável da alma, mas formam uma unidade indissociável. O ser humano não pode existir sem corpo, porque ele não tem um corpo, mas é corpo. Em que sentido?
É pela corporeidade que me relaciono, me comunico, ultrapassando os limites e as limitações da minha individualidade. Sem os outros, nem sequer eu chego a ser eu. O pior que pode acontecer a alguém é o individualismo. E uma liberdade, pretensamente obtida à custa da liberdade dos outros, destrói-se a si própria, porque lhe falta aquilo para o qual existe: a pessoa humana, na totalidade da sua constituição. Por isso, a liberdade dos outros não limita a minha. Pelo contrário, quanto mais eu contribuo para a liberdade alheia, mais livre eu sou. Que é a vida, senão uma harmonia de liberdades?
Ora, se há um campo na nossa existência no qual a sua comunicabilidade mais se realiza, é o da sexualidade. Esta é por natureza comunicação e como tal fonte de uma vida que se não reduza à materialidade individualista. E foi para uma vida assim que Deus nos criou e redimiu. A própria ressurreição de Cristo consistiu na sua elevação definitiva do seu corpo à dimensão ilimitada da comunicabilidade do amor de Deus. Por isso o cristão que o reconhece como Senhor, é transformado por este amor, torna-se propriedade dele, para amar como Ele. Ou, se preferirmos, para Ele amar em nós, e um dia obtermos definitivamente de Deus a mesma graça de ressurreição.
Daí na conclusão de Paulo: O corpo não é para a impureza, mas para o Senhor, e o Senhor para o corpo (v. 13b). Ou então, dito em forma de pergunta retórica (v. 15); Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo? Iria eu então tomar os membros de Cristo, para fazer deles membros de uma prostituta? É que uma relação sexual desse género, seja pelo egoísmo, inerente à exclusiva satisfação do próprio prazer, seja pela sua redução ao tempo e à materialidade do acto, está desprovida do amor que me proíbe tratar o outro como um objecto de que me sirvo quando dele preciso. E note-se que isso pode não acontecer somente na prostituição. A palavra grega porneia, traduzida por impureza, aplica-se a todas as uniões sexuais ilícitas, porque contrárias à caridade.
São impuras, porque corrosivas da vida obtida pela caridade, No caso dos cristãos, são corrosivas da união com Cristo, pela qual cada um forma com ele um só Espírito (v. 17), ou a qual faz do nosso corpo templo do Espírito Santo (v. 19), Como a Igreja (3, 16), assim cada um dos seus membros é lugar sagrado de encontro com Deus, naquilo que mais o caracteriza: a castidade que, nos que estão por Ele possuídos, se manifesta de um modo privilegiado no seu corpo, o meio por excelência da comunicação e da comunhão. Por isso é que o pecado de uma relação sexual impura é o que mais afecta o corpo (v. 18). Ou ao contrario: é pelo corpo dos que, resgatados do pecado pela morte redentora de Cristo, melhor se pode glorificar a Deus, nomeadamente pela vivência da sexualidade marcada pelo seu amor.
12-03-2009
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