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“ALEGRAI-VOS SEMPRE NO SENHOR”
É impressionante a insistência com que Paulo, em Fl, fala da alegria: o substantivo aparece 5 vezes e o verbo 11. É ele próprio que se alegra, por vários motivos, com relevo para o facto de estar na prisão, com sérias possibilidades de vir a ser morto (2, 17s), e para a solicitude da parte dos Filipenses (1, 4; 2, 2.17s; 4, 1.10). Estes, por sua vez, são repetidamente convidados a alegrar-se, seja como atitude permanente (1, 25; 3, 1; 4, 4), seja por motivos específicos (2, 17 s; 2, 28).
Humanamente, não é normal que alguém se alegre na tribulação de que está a ser vítima, e, para mais, sem fim à vista. E, então Paulo, que fervia por umas imparável actividade missionária. Como se explica isto?
Vejamos o que ele nos diz em 4, 4-9, quase no final da carta. Embora se trate de uma exortação aos leitores, os motivos pelos quais eles devem alegrar-se são comuns a todos os que comungam da mesma fé em Cristo: os cristãos de Filipos, o Apóstolo e nós, que, talvez, até já experimentamos a alegria a que somos convidados. Mas será que estamos todos conscientes da sua origem profunda, especificidade e significado, particularmente para a nossa missão de cristãos?
Fl 4, 4-9
Alegrai-vos sempre no Senhor. De novo digo. Alegrai-vos. O que de vós é bondoso seja conhecido de todos os homens. O Senhor está próximo!
Por nada vos deixeis inquietar. Pelo contrário: em tudo, pela oração e pela prece, os vossos pedidos sejam dados a conhecer a Deus, em acções de graças. E a paz de Deus, que ultrapassa toda a inteligência, guardará os vossos corações e os vossos pensamentos em Cristo Jesus.
De resto, irmãos, tudo o que seja íntegro, tudo o que seja honroso, tudo o que seja justo, tudo o que seja puro, tudo o que seja agradável, tudo o que seja respeitável, se houver qualquer coisa que seja virtude, se houver qualquer coisa que mereça louvor, tende isso em mente. E o que aprendestes e recebestes, ouvistes de mim e vistes em mim, ponde isso em prática. E o Deus da paz estará convosco.
Que Paulo nos exorte, por duas vezes (v. 4), a segunda das quais com uma especial ênfase, a viver na alegria, e ininterruptamente, significa para já que se trata de algo fundamental para a nossa vida, não só física e mental, coimo sobretudo cristã. A alegria é constitutiva da nossa identidade, está integrada na nossa relação existencial com Cristo Senhor. Mas de que alegria se trata e de como a obter?
A etimologia dos termos gregos correspondentes podem ajudar-nos a encontrar a resposta. Khará (alegria) e káirein (alegrar-se) são da mesma família verbal de kháris (graça) e kharízesthai (agraciar). Na origem da alegria está, pois, uma graça ou gesto benevolente, particularmente para com alguém que, além de socialmente inferior, está numa situação de carência e abatimento. A partir disto, passou a usar-se, como saudação, a palavra alegrar-se, com base na graça que é, para ambas as partes, o encontro entre elas.
Este terá sido um dos motivos que levou Paulo, nas saudações das suas cartas, a substituir alegrar-se por graça, a que habitualmente junta a paz, o termo usado na saudação judaica. Mas a maior novidade está na indicação do autor da graça que é fonte de paz. Deus nosso Pai e o Senhor Jesus Cristo (Fl 1, 2). É de Deus que recebemos a maior graça: a salvação oferecida na morte redentora de seu Filho e a que temos acesso pela fé que, por sua vez, nos leva a viver no seu amor. Portanto, é nesta dupla comunhão com Deus, e nele, com os irmãos, que está a fonte única e inexcedível da nossa alegria.
Ambas são referidas por Paulo (v. 1): na comunhão inter-humana insere-se o que em nós há de bondoso e que deve ultrapassar o âmbito das relações entre os cristãos; da comunhão de fé com Deus faz a exclamação: o Senhor está próximo, um grito de esperança na gloriosa vinda de Cristo no final dosa tempos, com base na graça da sua primeira vinda. Uma origem da nossa alegria, a dois níveis, que Paulo desenvolve a seguir, mas em ordem inversa, que é, de facto, a da sua constituição: é da comunhão com Deus (vv. 6s) que nasce e se mantém a comunhão entre nós (vv. 8s).
1. Vivemos numa alegria profunda e indestrutível, na medida em que por nada nos deixamos inquietar, mas, ao contrário, em tudo, especialmente nas situações adversas, nos confiamos a Deus, pela oração e pela prece (v. 6). É o que Paulo chama a alegria da fé (1, 25), fruto da presença eficaz do Espírito Santo em nós (Gl 5, 22). A fé exprime-se e alimenta-se particularmente pela oração. E, quando não sabemos o que havemos de pedir, para rezarmos como deve ser, o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis (Rm 8, 26). E é tal a nossa confiança em Deus que até a prece, com que transmitimos a Deus os nossos pedidos, é feita em acções de graças. Seja qual for a resposta divina, sabemos que será sempre para nosso bem. Tantas e tão grandiosas são as graças dele recebidas.
E que resultado pode ter esta fé em oração, senão a paz de Deus... e com Deus (v. 7)? A Ele devemos a comunhão com Ele. Por isso a paz que dele recebemos ultrapassa toda a inteligência. Se Ele nem sequer poupou o seu próprio Filho, mas o entregou por nós (Rm 8, 32)!? Ora, se foi assim que Ele nos reconciliou consigo, então, aconteça o que acontecer, no presente e no futuro, podemos ter a certeza de que Ele guardará os nossos corações e os nossos pensamentos, isto é, todo o nosso ser, em Cristo Jesus. Sem mais, da nossa parte?
2. Vivemos numa alegria profunda e indestrutível, se, em paz com Deus, nos entregarmos aos outros, do mesmo modo como Paulo nos trata: como verdadeiros irmãos. É a fé vai actuar na caridade (Gl 5, 6), concretizada aqui em oito modos de agir, distribuídos binariamente (v. 8); o que, visto da minha parte, é íntegro, justo, agradável, cheio de virtude, é completado, visto da parte dos outros, pelo que é honroso, puro, respeitável, meritório de louvor. São qualidades que já, na época, faziam parte do código moral, proposto, por exemplo pelos estóicos. Um ideal, portanto, que devemos ter em mente. Mas, como pô-lo em prática, de um modo total e persistente?
Para isso, para que seja autêntica caridade, precisamos da energia da graça, própria do Evangelho, aprendido e recebido de Paulo e por ele vivido (v. 9). Então sim, pela entrega incondicional e gratuita com que o fazemos, é o Deus da paz que actua em nós e é anunciado ao vivo por nós. E se for acolhido pelos outros, nomeadamente por aqueles a quem nos entregamos, torna-se fonte, também para eles, da verdadeira paz, a que ultrapassa toda a inteligência e capacidade humanas. E a nossa alegria será completa: a alegria de vermos a nossa vida a frutificar na vida daqueles a quem a damos: a alegria, que é um dos rostos mais visíveis da fé e da caridade que temos em Cristo. Graças a Deus!
In: “Um Ano a caminhar com São Paulo”
De: D. Anacleto de Oliveira – Bispo Auxiliar de Lisboa
Compilado por: António Fonseca - 27-03-2009
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